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Não me lembro de você 

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Não me lembro de você 

Quando menos se espera, a vida se encarrega de – à maneira dela – ir mostrando em exemplos o que precisamos entender.  

Mesmo em meio à correria habitual de uma tarde qualquer e ainda sem perceber que aquilo já era uma dessas demonstrações da vida, um amigo me convida para uma rápida entrada em um asilo. Sei que hoje essa não é mais a denominação correta para uma instituição assim, mas como não há em mim nenhuma intenção pejorativa, é assim que vou chamar. 

Entre passos e olhares que tentavam ser mais do que curiosos dentro de um cenário novo para mim, chegamos a uma sala onde, talvez, seis ou sete senhoras assistiam ou simplesmente olhavam para uma televisão ligada exibindo um “vale a pena ver de novo”. 

Me permito aqui omitir nomes de pessoas e lugares reais desse cenário: a denominação do asilo, o amigo e a senhora que adentra agora nesse script. Paramos em frente à penúltima mulher antes da televisão. O amigo anfitrião a chama pelo nome. Ela até então com a cabeça abaixada, acordada, mas olhando para o nada, melhora a postura e nos encara. Diante do nome dela que foi pronunciado, um breve histórico se passou em minha memória: eu, bem menino, acompanhava de vez em quando minha mãe, que era uma expert em tricô, a uma casa linda, enorme, em um bairro nobre da cidade, para aulas entre novelos de lãs e agulhas, dadas a uma mulher. Eram aulas sem o compromisso de sê-las. Não remuneradas e que se tornavam um bom pretexto para um farto lanche e conversas animadas entre elas, que eu ficava apenas de longe escutando. 

Da mulher que nos recebia, eu sabia o nome, o nome do marido, do filho, a atividade autônoma e muito lucrativa que ela exercia, conhecia a casa e os carros chiques na garagem do imóvel. Tempos depois, já sem precisar andar de mãos dadas com a minha mãe, vi inúmeras vezes a tal pessoa pelas ruas da cidade dirigindo seus carros chiques e nunca mais aconteceram as aulas de tricô. 

Ali, diante dos meus olhos, se apresentava uma senhora de cabelos brancos, poucos e bem rentes à cabeça, com a ausência de um dente superior frontal, a voz diminuída talvez pelos solavancos da vida, mas com o mesmo semblante da mulher que nos recebia na casa enorme e linda para as aulas de tricô oferecidas por minha mãe. Sim! A mesma pessoa! Confesso que não consegui entender o que poderia ter acontecido na lacuna desses anos em que não mais a vi pelas ruas com seus carrões e isso também pouco faria diferença. O significativo para mim era a vida mostrando a efemeridade de tudo. Tudo apenas é, está, momentaneamente está! De frente para mim, uma senhora vestida em uma camisola barata, longe das roupas caras de outros passados dias, afundada em um sofá, em meio a outras senhoras igualmente distanciadas de qualquer glamour, me olhando e, diante da tentativa de meu amigo anfitrião em fazê-la se lembrar de minha mãe e de mim, ela com o olhar que buscava mais dela mesma, conclusivamente, antes de voltar a abaixar a cabeça, disse: “não me lembro de você”. 

E voltou para a intimidade do seu atual mundo, onde talvez ela seja – e espero que seja – feliz. 

*Pedro Bertozzi é radialista, apresentador de TV e músico

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