Historicamente, o dia 13 de maio é tido como a comemoração auge do que chamamos “Abolição da Escravatura”. Quem de nós, hoje com mais de 30 anos, não coloriu na escola os desenhos mimeografados retratando negros escravizados em castigos de mãos acorrentadas e ouviu sobre a princesa bondosa que havia assinado a tal lei, de nome sugestivo por sinal, Áurea, que significa branca, libertando um povo sobre o qual só sabíamos haver sido escravo. Não ouvimos a parte do “povo livre escravizado”, “povo desumanizado”, “povo torturado”. E muitos se perguntam até hoje qual o problema em comemorar a libertação de um povo? É simples: não se comemora um direito, a liberdade é o que é seu por direito e direito é o que ninguém pode te tirar. A “libertação”, que na verdade não ocorreu, e esse é o segundo motivo pelo qual o Movimento Negro se recusa acertadamente a aceitar o 13 de maio como símbolo de liberdade, de um povo vendido como mercadoria, separado de familiares, trazido brutalmente ao Continente Americano engavetado em porões de navios negreiros, jogado ao mar como pedra quando era necessário contrabalancear o peso do navio, açoitado até a morte e submetido a trabalhos desumanos, essa “libertação” não foi um prêmio, foi o início da marginalização de todo um povo que até os dias de hoje não pode fazer jus ao que chamamos cidadania em toda sua plenitude, embora o seja no papel.
Dessa forma é que o Movimento Negro no Brasil, a partir da década de 70, instituiu o dia 20 de novembro como o Dia da Consciência Negra, lembrando seu maior herói na resistência contra a escravidão, Zumbi dos Palmares, que, ao lado de Dandara e outros símbolos da luta do negro, resistiu em um Quilombo por muitas décadas, se refazendo em cada batalha, se reerguendo a cada ataque, se construindo como símbolo de resistência. Um herói negro. Um dia justo. Dia que nos lembra que a luta não acabou e que a consciência sobre as condições de acesso social de todo um povo precisa ser refletida, lutada, exigida, dia após dia. Distante e independente de qualquer idealização que se possa fazer de um quilombo e de um líder, Palmares nos remete sim, muito mais do que qualquer lei assinada por pressão internacional a despeito de questões comerciais, à história de resistência do povo negro.
Mas qual é, na verdade, o problema que traz tanta discordância sobre o Dia da Consciência Negra? Basta adentrarmos no famigerado mês de novembro, especialmente se estamos tratando de uma Instituição Escolar, e se iniciam as discussões. Muitos alegam que na verdade deveríamos comemorar a consciência humana, já que somos todos iguais e se julgam no direito de abolir a data, de trazer apenas outros temas à discussão, ignorando o racismo existente, presente e persistente na sociedade brasileira. Outros relatam que não se faz necessária nenhuma menção à data e que deixar de falar em racismo miraculosamente o faz deixar de existir. Há muitos bem intencionados que repetem estereótipos associados ao negro brasileiro, repetindo sem querer estigmas que duramente o Movimento Negro busca derrubar.
Em um Brasil idealizado, aquele que só existe na fantasia de sujeitos que insistem em não ver a realidade ou são insuficientemente sensíveis à dor do outro, realmente, falar em consciência humana seria adequado. No entanto, detesto desanimar os adeptos de Ali Kamel, mas o Brasil é determinantemente racista. Estamos em um país onde ser negro faz ainda toda a diferença no acesso a direitos básicos e cidadania. Vivemos em um Brasil que extermina jovens negros em um genocídio que dá continuidade aos horrores da escravidão. Basta olhar para os números oficiais de mortes de jovens no Brasil e para os índices da população que vive na faixa de pobreza que veremos que ser negro e pobre não é coincidência.
Dói, dói bastante admitir que pessoas negras são abordadas em blitz de forma proposital, apenas por serem negras, dói muito perceber que o racismo é institucionalizado no Brasil ao ponto de mulheres negras serem vítimas de violência obstétrica com muito mais frequência do que as mães brancas, ainda que pobres. É difícil, é doloroso, porque isso nos torna responsáveis pela construção de um país justo e assumir que há racismo nos implica pessoalmente, mas é um passo necessário, porque só admitindo que estamos andando na contra mão de uma sociedade etnicamente e socialmente mais justa é que poderemos adequar nosso caminho para a trilha da igualdade. Dá trabalho olhar para a aluna negra constrangida em sala de aula porque não se empoderou ainda da beleza de seu cabelo e seus traços, é difícil abordar a história da África, nosso histórico de escravidão e atualidade de preconceito. É extremamente complicado defender as religiões de matriz africana em um contexto de Estado que ainda não se descobriu laico e que é hegemonicamente cristão. É mais fácil fingir que, sendo todos iguais, somos equiparados socialmente. Mas precisamos ter coragem.
Arrancar de nós a coragem que herdamos com nossas raízes africanas e pensar em toda beleza que nos constitui enquanto brasileiros graças ao povo negro, não fingindo que por este histórico de mestiçagem somos todos alegres e felizes como uma grande massa sem diferenças históricas e culturais que fazem toda a diferença no resultado social final que demonstramos com os salários no final do mês ou com os índices de violência contra os jovens, mas buscando a coragem de um povo guerreiro que ergueu esse país debaixo de chibata e que hoje não mais precisa engolir o choro ou fingir não ouvir os xingamentos racistas que ecoam de nossa construção histórica cruel e desumana. Tomemos como exemplo a coragem de nossos irmãos negros aqui mesmo, do Sul de Minas. Na cidade de Alfenas, o Núcleo de Consciência Negra, ao lançar o documentário sobre sua história de militância étnica e cultural na cidade, teve seu muro pixado com dizeres racistas. Impelidos, em um primeiro momento, a apagar, pintar por cima, notaram o incômodo causado pela pixação e a mantiveram, não como apropriação do termo, mas como símbolo de luta. Quando olham para o muro, quando todos olham para aquele muro e sentem o incômodo causado pela ofensa, aqueles negros e negras ganham força para lutar. Quando cada um de nós olha para um muro que buscou lhes ofender e vemos que aquele xingamento não foi apagado como se esperava, somos obrigados a lidar com a realidade do racismo. Deixar a pixação no muro significa deixar demonstrado ali que o racismo está presente, mas que há uma luta apesar dele e contra ele. Significa que não fingiremos mais sermos uma nação sem a mácula da escravidão, mas que, sofrendo com estes resquícios e resultados da marginalização, ainda assim, aquelas mulheres e homens negros conseguem reestruturar sua comunidade contando a história de seus antepassados e participando ativamente da construção de uma sociedade mais justa, com um obstáculo, agora visível, mas do qual se pode desviar até que seja derrubado e desapareça de vez. Aquele povo escolheu encarar a realidade e o Brasil precisa aprender com estes exemplos. É Consciência Negra e não humana porque não temos uma sociedade igualitária! É Consciência Negra e não Semana da Vida porque nossas vidas não são igualmente consideradas ainda! É Consciência Negra porque temos Zumbi! É Consciência Negra porque temos Dandara! É Consciência Negra porque temos Fábio, Raquel, Dani, Maria Olímpia, Decão, Senegal, Tita, Augusta, Lúcia, Divino, Lucas, Cleiton, Zequinha… Zé, João, Maria…. negros, negras.
