A experiência teatral clássica opõe dois lados: artistas e plateia. Entre ambos há um fosso, que pode ser apenas uma delimitação física – nos espetáculos de alta qualidade -, mas que pode simbolizar um abismo também emocional e intelectual. Há experiências, no entanto, que desafiam o espaço tradicional. É o caso da Mostra enSAIA, produzida pelo Núcleo de Pesquisa Teatral do SESC. Com direção de Nando Gonçalves, a mostra uniu artistas e público no mesmo espaço, direcionados pelo jogo de luzes e por demarcações no chão.
Nesse espaço confinado, não há lugar ou tempo para distrações, hesitações, distanciamento físico ou emocional: o elenco, composto em sua maioria por mulheres, caminha entre o público, desafia-o com gestos, falas e olhares; desafia-o a refletir, a interagir e, sobretudo, a se responsabilizar pelo que vê, ouve e sente. Se alguém escolhe fechar os olhos, olhar para o lado, fingir que não ouviu, sair da sala, tem de conviver com as expectativas e julgamentos dos outros e de si mesmo.
Mas por que haveria o desejo de sair, de fugir, de se esquivar da experiência proposta? Porque a mostra enSAIA é uma provocação – e uma convocação. Uma convocação para refletir sobre o papel da mulher. Como o título sugere, a saia vira objeto cênico chave para a criação de episódios em que as atrizes interrogam o público sobre os espaços – físicos e simbólicos – ocupados pelas mulheres: a mulher não-ouvida – e que não se ouve -; a mulher que confronta imagens ideais – de mãe, de esposa, de amante; que se bate contra o próprio reflexo, por não (se) reconhecer nele; que afronta o Vestido de Noiva, alçado à categoria de personagem, de ídolo iluminado em seu altar; a mulher criadora e contadora de histórias, propagadora da cultura de um povo; a mulher em relação com o homem – relação que, não raro, se torna combate e opressão. As falas, produzidas pelas próprias atrizes a partir de suas experiências e de fragmentos de escritoras, ecoa pela sala em gritos e sussurros e cantos. Falas de mulheres, para mulheres, para todXs que se permitirem ouvi-las.
A saia vira véu; a saia vira venda; a saia vira vagina.
O espelho vira muro, não das lamentações, mas da disseminação da palavra – palavra das atrizes e palavra do público, convidado a escrever ao final da experiência, convidado a dar testemunho do que viu, ouviu e sentiu, em letras vermelhas misturadas ao seu próprio reflexo. O que você escreveria em seu espelho sobre a mulher? Teria coragem de olhar para a sua própria imagem atravessada por essas palavras?
Em 2018, não houve mensagem mais urgente do que a reflexão sobre a condição da mulher. A Mostra enSAIA encerrou o ano sem nos deixar esquecer do que foi dito e feito; sem nos deixar esquecer do que poderá ser dito e feito nos anos seguintes. Saia da sala se tiver coragem. Sua ausência será notada?
*Rony Brandini é escritor e psicólogo