Primeiro, os mortos. Atores cobertos de lama, que a princípio poderiam ser confundidos com objetos cênicos, levantam-se de onde seus corpos estavam estirados e caminham trôpegos pelo palco, feito zumbis. Assim começa o espetáculo “Lama – O Grande Cemitério”, do grupo Nuclearte, dirigido por Nando Gonçalves e escrito por João Araújo e Isabela Viana, a partir dos relatos de moradores das cidades de Mariana e Brumadinho, as cidades mineiras devastadas pelo rompimento de barragens de mineradoras. Os mortos serão onipresentes na peça; retornam para que não sejam esquecidos.Não falam, mas cantam, como se esse fosse o único meio de expressão possível para aqueles que foram silenciados. Cantam e atuam como coro, com canções autorais compostas para o espetáculo, que complementam, ilustram e renovam as histórias narradas no palco. Depois dos mortos, o Povo, o homem construído do barro, erguido e vestido pelos mortos. Depois, Minas Gerais, a mulher construída do barro, erguida e vestida pelos mortos.
O homem é nosso contato com o chão, com as miudezas que compunham a vida daqueles que viveram e morreram em Mariana e Brumadinho. Enquanto prepara um café em sua casinha de madeira – casa em bom estado, ele afirma, embora nada possa ser feito em relação à vista -, o homem rememora seus sonhos, lamenta suas perdas – os sonhos e perdas de um povo -; relembra os mortos que um dia frequentaram sua casa: eles têm nome, têm história. Até o dia 5 de junho de 2019, o número de mortos identificados na tragédia de Brumadinho chegou a 247 – 22 pessoas continuam desaparecidas. É fácil que os mortos se tornem estatística; uma grande massa amorfa de lama. Precisamos relembrar seus nomes, suas histórias.
Minas, a mulher que pranteia suas filhas e filhos, as cidades tomadas de si, exploradas, violadas pela ganância daqueles para quem um ser humano “não vale uma pelota de minério”, Minas se lembra do Rio Doce, que já foi azul, e o jogo cênico de luzes nos lembra que outra cor é possível no mundo além do bege e do marrom; Minas se lembra dos peixes, e das cidades que floresciam em torno do rio; Minas se lembra dos homens que a violentaram, que invadiram sua saia e ignoraram seus gritos de dor e desespero, que ecoam pelo teatro. Minas relembra a promessa de progresso, que se tornou dependência, que se tornou negligência; uma coisa sempre puxa a outra.
Minas conheceu o mar – de lama: o tecido marrom que se estende pelo palco e arrasta consigo casas, bichos e gente. O tecido marrom que os mortos carregam e estendem sobre a plateia – surpresa, atônita, incomodada, talvez, temerosa de que a sujeira do pano impregne suas roupas elegantes. Os mortos, mudos e desfigurados pelo barro, não se importam com a vaidade dos vivos.
Os atores esperam na saída do teatro, cobertos de lama e de lágrimas. A plateia parte, e talvez espere pela próxima tragédia, pela próxima violação, pelo próximo encontro de Minas com o mar. Mas não há de se esquecer do pesadelo em bege, dos lamentos de Minas, das histórias do Povo, dos olhares inquisidores dos mortos.
*Rony Brandini é escritor
Ficha técnica
Lama – O Grande Cemitério
Direção: Nando Gonçalves
Codireção: Luciana Rossi
Direção musical: Nanda Dearo
Arranjos: Nanda Dearo
Violão: Guilherme Reche/Rafa Falz
Clarinete: Aria Nery
Percussão: Gui Guerriero/ Fernanda Franz
Dramaturgia: João Araújo
Textos: João Araújo/Isabela Viana
Cenografia: Nando Gonçalves
Cenotécnicos: Aria Nery e Juliano Borges
Personagens: Isabela Viana (Minas Gerais); João Araújo (Povo de Minas Gerais)
Coro: Aria Nery, Fernanda Franz, Gui Guerriero, Julia Montezano, Lino Bento, Marcelo Ambrósio, Nanda Dearo, Rafa Falz e Victor Araújo