A Cultura nesse início do século XXI não se mostra mais dura, invariante e estagnada como se acreditou e se consolidou conceitualmente em épocas anteriores. Com aspectos e contornos livres, dispersos e diversos, a cultura contemporânea está pulverizada globalmente e demonstra a ideia de uma sociedade ampliada em seu próprio conceito.
A globalização, que leva a cultura de um continente para outro ou que possibilita o acesso desterritorializado por meio do mercado, da internet ou do turismo, por exemplo, liquidifica aquilo que antes estruturava-se como algo sólido, delimitado, institucionalizado; como as belas artes foram por anos a definição perene do que era a cultura.
O impacto das práticas sociais e culturais contemporâneas de intercâmbios, distribuição e circulação de bens e serviços, a uma velocidade jamais experimentada antes do século XXI, redefiniu o que chamamos de cultura e o dever das instituições e da sociedade civil perante essa nova idealização. A cultura, como agente transformadora, passa a ser entendida também como mutável e não domesticada. Diversa em sua própria consistência, requer políticas culturais que não sejam moldadas para a preservação de uma única estética ou valor, ou ainda um conjunto delimitado a partir desses. O clamor do nosso tempo é por políticas culturais que busquem um ponto de equilíbrio entre os interesses dos poderes público e privado, privilegiando a autonomia dos cidadãos em suas iniciativas, individuais ou coletivas como sugere a Agenda 21 citada por Teixeira Coelho, um dos principais pesquisadores de políticas culturais do país.
Na mesma publicação, Coelho nos explica outro conceito baseado no antropólogo britânico Edward Burnett Tylor, da cultura correlacionada com a “civilização” proposta como modelo para outras culturas ou a cultura que as outras tendem a imitar. Célio Turino, historiador que cresceu em Campinas-SP e trabalhou até 2010 na Secretaria da Cidadania Cultural no Ministério da Cultura, já no final da sua gestão escreveu um livro que recomendo acesso, “Ponto de cultura: o Brasil de baixo para cima”. Lá, Célio ressalta que quando cultura é estritamente relacionada com o conceito de civilização ela é pensada como o meio pelo qual se mede o desenvolvimento e o progresso, e que à medida que são criados esses parâmetros de reconhecimento e validação de algumas, mas não de todas as manifestações culturais, “o patrimônio cultural da sociedade vai ficando incompleto”. Assim, reconhece-se a “diversidade” como conceito a ser encarado pelas políticas culturais, em consonância com a dinâmica cultural contemporânea. O programa Cultura Viva, onde Célio trabalhou o vasto conceito de cultura e cidadania cultural, é um exemplo recente que se expandiu para a América Latina, reconhecendo a autonomia das diversas manifestações culturais enquanto recurso existente e força motriz da cultura, conectando-as a nível de rede.
Outro conceito que deve orientar as políticas culturais é o “território criativo”, principalmente no que tange a cultura como aspecto essencial desse. No inspirador livro “Cidades Criativas”, Ana Carla Fonseca Reis, uma das principais referências da Economia Criativa no Brasil, nos fala da cultura como parte integrante do planejamento de cidades, de modo transversal e continuado. Em exemplos das cidades de Bilbao (Espanha) e Bogotá (Colômbia), percebem-se experiências de transformações econômicas e sociais, desencadeadas por ações culturais planejadas a partir da estrutura orgânica e cidadã das cidades. Acredito que seja importante também considerar que a partir da inserção da cultura no planejamento das cidades, transversalmente e com participação da sociedade, podemos convergir instâncias de participação, representação e transparência social, como ferramentas de observação cultural na esfera pública; no Brasil, é nos municípios onde a sociedade está mais próxima do Estado, e teoricamente, pode participar mais ativamente dos propósitos, soluções e transformações.
Por fim, proponho “o gosto” como vetor das políticas culturais contemporâneas, para a ampliação da esfera de presença do ser, conceito de Montesquieu, no qual entende-se que essa ampliação é conseguida mudando o lugar (viajando), as fontes de nossas sensações, nossos gestos e nossas roupas. Como também para a ampliação dos mapas mentais e afetivos, conceito proposto por Ana Carla, pois “não se ama o que não se conhece”. Penso que, nesse viés, caberiam nas políticas culturais, ações que promovam e valorizem a experiência de cada cidadão para a ampliação do ser humano em contato com o mundo, tendo a cultura como algo voltado ao desenvolvimento humano e sustentável. E o gosto, como tema central na cultura e na política cultural.
Capela de Santa Clara, obra de Oscar Niemeyer.
São Sebastião da Grama – SP
Fotógrafo Joelmir Barbosa (Santa Rita de Caldas)
*Renan Moreira é membro do Coletivo Corrente Cultural e atualmente desenvolve projetos na Superintendência de Cultura de Pouso Alegre.