Já na primeira música, a banda As Bahias e a Cozinha Mineira impressiona. O visual marcante, com os cabelos e figurinos chamativos das vocalistas, fica para trás já nos primeiros acordes. Logo o rótulo de banda com cantoras transgêneras se transforma na catarse do público embalado por uma brasilidade peculiar.
Após a apresentação, realizada na segunda-feira (8) durante o Grito Rock, o Poços Já conversou com as vocalistas Assucena Assucena e Raquel Virgínia, o guitarrista e violonista Rafael Acerbi, o baterista Vitor Coimbra, o baixista Rob Aschtoffen, o pianista e tecladista Carlos Eduardo Samuel e a preparadora vocal Sara Alencar.
Durante a conversa a banda procura se definir e também fala de assuntos como o Carnaval, influências musicais e questões de gênero. Depois de uma entrevista cheia de declarações interessantes, fica a sensação de que “As Bahias” quer só fazer o próprio som, carregado de significados, e busca a felicidade. Como diz Raquel, inspirada em Caetano Veloso, “gente é pra ser feliz”.
Poços Já: O que nós assistimos hoje foi uma das coisas mais brasileiras que já ouvimos. A intenção é essa?
Rafael: É isso mesmo.
Assussena: Começa pelo nome, mistura as bahias e a cozinha mineira. A gente sempre adensa o nome pela influência que o Rafa traz do Clube da Esquina, Toninho Horta, essa coisa mineira. Além das influências que o Rafa tinha, junto com os meninos, do movimento manguebeat, que está presente no disco. Eu e a Raquel, principalmente, temos o tropicalismo na figura de Gal. A gente busca nela a referência maior para a nossa musicalidade.
Vitor: O disco tem esse movimento de tradição e modernidade, de brasilidade. A gente escolheu de fato as vanguardas que a gente quis citar, em termos sonoros e estéticos. O show é uma citação, a gente cita Dominguinhos, Gal, Caetano, mas é uma criação, uma provocação, uma proposta dessa brasilidade que pode acontecer de várias maneiras. A gente realocou as nossas opções e o som nosso surgiu.
Assucena: Foi fazendo um caldeirão, né?
Vitor: Uma geléia geral (risos).
Raquel: Eu acho estranha essa pergunta, na verdade, sendo sincera. Eu andei pensando nisso, de falar que o nosso som é brasileiro. Isso faz parte de um país em que as baladas que tocam música brasileira são de música alternativa. A gente tem uma concepção sobre a nossa musicalidade que quando parece que alguém faz um som brasileiro a gente tenta até entender que som é esse.
Poços Já: Vocês estão tocando em um evento alternativo de Carnaval. Como vocês se posicionam enquanto artistas nessa época do ano?
Raquel: Se eu pudesse estava puxando trio agora (risos). Eu acho que a gente se posiciona bem parecidamente. Eu não gostaria de fazer essa festa e parecer que é uma festa paralela. Por mais que pareça, que dê toda a pinta, não é isso que a gente quer. O Carnaval é lindo, mas de um país contraditório, violento, com concentrações de renda imensas. Todas as festas que se espalham pelo país eu acho maravilhosas e se pudesse eu participava de todas, principalmente em Salvador. Eu não acho nada alternativo no Brasil quando se trata de Carnaval, porque é tanta mistura. Não tem como você recusar o Carnaval, o que você tem que fazer é problematizar o Carnaval.
Assucena: É problematizar a sexualização da mulher negra.
Raquel: Os abadás caríssimos, a apropriação cultural. Os artistas têm que se posicionar sim em relação a isso. Mas se colocar de forma paralela, alternativa, eu acho meio blasé. Meio não, acho blasé mesmo.
Poços Já: Confesso minha ignorância em relação a essa questão de gênero. Como devo me referir a vocês duas? O que são?
Assucena: Somos duas mulheres trans e é isso. A nossa discussão é a nossa vida cotidiana, é lutar contra a transfobia, contra o machismo, contra o racismo. O nosso show se apresenta bem em uma postura contra o racismo, que a Raquel traz na linha de frente, o Carlos principalmente e a banda como um todo. A nossa missão é reconhecer privilégios, denunciar privilégios, posturas, movimentos que nos atrasam como seres humanos. Somos mulheres trans e não abrimos mão de falar isso. Essa pauta é importante pela visibilidade e representatividade. No início me e incomodava, à Raquel também. Os jornais falavam da gente: “Com duas mulheres trans, banda lança disco”. Mas a gente começa a perceber que esse movimento de rótulo é importante para mostrar que há outros lugares para as travestis, não só os de marginalização social, a prostituição, a rua. A maioria delas é expulsa de casa porque se assumem como mulheres, se revelam como mulheres para a família. O mercado de trabalho não aceita, então a gente precisa abrir a discussão para essas mulheres. Quem quiser ir para a prostituição vai, mas a prostituição tem que ser uma decisão, não uma opressão, uma obrigatoriedade como rumo. Noventa porcento das travestis são garotas de programa, isso é um absurdo.
Raquel: Só pra falar uma coisa com relação à outra pergunta, eu lembrei agora. A gente estava falando hoje do Psirico. Não sei se vocês viram, no show eu falei “Viva Psirico”. Eu acho o Psirico genial, se você parar para ouvir os arranjos são foda e tem muito músico que não vai fazer mesmo o que a negada está fazendo ali, vai ter que ralar para tirar o swingue que os caras têm ali. Quem escuta Psirico em Salvador é a galera da favela. Eu fui no show deles no final do ano e tem uma música que eles falam assim: “Favela ê, favela, respeita o povo que vem dela”. Eu comecei a chorar. Tem um vício de achar que no Carnaval não estão acontecendo rebeldias, manifestações. Porque manifestações artísticas estão sempre reivindicando alguma coisa. Se você ficar assistindo o Carnaval de Salvador pela televisão você só vai ver Ivete Sangalo, mas se você for para Salvador vai ver como é rico, tem de tudo. Como você vai falar que não quer saber disso? É uma das maiores festas do país, deixa de ser blasé.
Poços Já: Se cada manifestação artística reivindica algo, gostaria de saber o que cada um de vocês reivindica.
Raquel: Eu reivindico vozes, sabe? Artista olha por um ângulo que ninguém está observando. Tem certos ângulos que são invisíveis, por questões sociais, que a gente procurou abordar. A ida à feira, o comprar o feijão, o lavar a roupa, o arrumar as camas, o fazer a comida forte para quem vai construir Brasília, para quem construiu. O disco visibiliza essas vozes, com essas atividades que as pessoas apagam em homenagens artísticas.
Assucena: A gente reivindica dignidade para o povo brasileiro, dignidade para nossa cultura, para as mulheres, mulheres negras, mulheres trans. Quando a gente diz dignidade é espaço mesmo, a manifestação de um espaço para determinado setor da sociedade. O espaço de direito é qualquer espaço, a gente tem que estar onde a gente quer. Mas não é assim. Essa é nossa reivindicação política, mas a artística é muita coisa. A artista fica difícil de te falar.
Vitor: Ao mesmo tempo a gente reivindica só fazer o som que a gente quer também, né? A gente tem todo esse viés político, mas também quer fazer o nosso som.
Rob: A gente está em um conjunto. Cada um tem a sua busca, mas a gente está sempre conectado. A gente passa muito tempo juntos, a gente é amigo. Na minha concepção, a reivindicação é estar no palco dando forma a toda reivindicação de todo mundo. Quando eu toco não estou dando força só à minha reivindicação, mas à de todos. E vice-versa. Isso é uma coisa que falta muito na música do Brasil.
Carlos: Nós temos muitas diferenças dentro do grupo, cada indivíduo traz consigo coisas muito especiais e isso nos deixa com aspectos muito variados. Mas isso traz unidade para o grupo. Esse aspecto cria um certo interesse no que é a música que a banda produz.
Sara: Vocês falaram muita coisa foda, eu estou digerindo ainda. Mas eu acredito em troca, acho que é isso que foi falado aqui de várias maneiras. Acho que a troca é uma grande reivindicação, as trocas entre relações humanas. Isso rola muito nas bahias, acho que é uma puta reivindicação.
Rafael: Eu assino embaixo tudo que foi falado. Mas como artista, pensando estritamente na arte, o que eu reivindico é poder me entregar para ela mesmo e é o que a gente tem feito nesse disco. Foi uma relação de muita entrega, de muita coisa custando valor, sentimento, saúde, e o que me faz pensar também a todo instante, quando estou nessa banda, é o lugar onde eu piso, o que eu sou nessa sociedade. Meus privilégios batem na minha cara o tempo inteiro e suavizam. Mas quando eu estou com elas, que são minhas companheiras diárias de trabalho, eu não tenho como não pensar no meu lugar, e o protagonismo, em o que é Brasil, processo de mestiçagem, o que é o nosso encontro. O nosso disco trouxe a reivindicação da beleza, de que em tudo há beleza. Na mulher há beleza, mas no sofrimento, no protagonismo, na sua história existe a reivindicação da beleza, da felicidade, da resistência. Que a nossa arte possa tocar as pessoas nesse sentido e libertar, para que se posicionem, se curtam, se deleitem em si mesmas e possam viver como querem. Acho que são esses dois movimentos, de entrega para arte e de reivindicação da beleza em tudo. Tem muita beleza apagada, o Caetano já falou que gente é pra viver e não para morrer de fome.
Raquel: Gente é pra ser feliz. Eta, porra!
Poços Já: E a música de vocês ultrapassa esse rótulo de serem uma banda com vocalistas trans. Vocês tem noção disso?
Assucena: Eu acho que a arte tem essa via do tocar o humano. A gente estava numa aula com a Sara e ela comentou uma coisa interessante. Existe música em qualquer povo, em qualquer lugar que você vá. Onde há reunião de pessoas existe música, então acho que a arte tem esse poder mesmo de desfazer as diferenças e aproximar pela beleza, que o Rafa acabou de trazer à tona. A negritude fez isso para combater o racismo e não é diferente do que a gente está fazendo. E às vezes a gente nem está aqui pra isso. Eu só estou aqui para cantar e, como o Vitor falou, fazer só o meu som. Se a gente quisesse falar só de amor, sorriso e flor, como a bossa nova fez, é a verdade nossa. A coisa mais bonita da arte é essa: estamos aqui para fazer o nosso som. As outras coisas são outras coisas, mas se revelam como muito importantes. A arte tem o poder de elevar as pessoas e colocá-las no mesmo lugar. Tem duas mulheres trans aqui cantando e que são iguais a todo mundo, cara. E estamos fazendo arte, fazendo bonito. Isso é o mais importante.