Enquanto as pessoas escolhiam as melhores roupas brancas para passar a virada de ano e se produziam, ela fez uma trança no cabelo ensebado para não ter que encarar que ele estava oleoso e precisava de um banho. Não queria festa, champagne, mesa farta, nem dar três pulinhos ou desejar paz. Não bastava desejar paz para estar pleno dela. Não acreditava nessa ilusão, pois se assim fosse ninguém perderia os entes queridos. Não haveria morte, nem lágrima, nem luto. Se bastasse a crença em algo, Papai Noel sairia dos livros infantis e se tornaria realidade. Sim. Tem a questão do final de ano ser uma passagem junto da família e era o primeiro Natal e Ano Novo sem seu pai.
Ela percebeu que no decorrer do ano preencheu cada minuto do seu dia com alguma coisa e agora de férias se dava conta de estar perdendo aos poucos seus ancestrais, ao ponto de se sentir sem história e sem o afeto daqueles que lhe depositaram amor. Estava se sentindo de jejum social. Aliás, nome bonito para um período no qual geralmente o que as pessoas mais querem é a fartura, seja de encontros, festas, comilanças ou imagens no Instagram.
Ficou surpresa em receber tantas poesias bonitas das pessoas: estariam lendo mais ou apenas replicavam frases prontas? Contudo, sabia que no gesto estava também incutido o carinho. No final do ano, evitou algumas confraternizações, foi em outras por um período mais curto e quando viu que não dava mais conta, simplesmente partiu para uma casinha na roça. Sempre amou cachorros e talvez tenha em si características parecidas com as deles: sociável, leal, disposta a ser útil, a ajudar. Mas tal qual um cão que se refugia perante o som dos fogos de artifícios, ela queria o silêncio das matas. O barulho incomodava, estar com outras pessoas cansava. Teve a alegria de cozinhar só para si, numa espécie de autocuidado.
Pegou as bandejinhas de frango e, para sua surpresa, as mãos se atreviam a caramelizá-lo com açúcar, imitando o modo que seu pai temperava o frango quando ela era criança. Não se tratava de homenagem a ele, afinal ele não estava presente. Mas era como se através desse gesto ela o trouxesse para perto e a infância fosse servida no prato.
O paladar detectou logo que a infância foi agridoce, mistura do doce de ser protegida e a acidez de não ter autonomia plena. E ela estava ali revivendo isso com pequenas garfadas. Reforçou em si que a festa de trinta e um de dezembro para primeiro de janeiro era só um ritual. A ideia de mudança pode ser feita todos dias, em cada nova decisão. E assim, começou o ano com a mudança de não participar dos festejos. Gostou de alimentar em si a autoria de fazer a própria comida, de escolher e bancar os próprios desejos e necessidades. Mudar não é fácil. Foram anos condicionada a mesma rotina de vivência e de repente ser livre para decidir é ameaçador, pois escolher algo significa renunciar a todas as outras oportunidades, significa empacotar a procrastinação e ousar.
É claro que a depender do que se vive, a pessoa escolhe resetar o computador da história e começar de novo. Viu a piscina azul da chácara e lembrou do filme “Liberdade é azul” no qual a personagem perde o marido e a filha num acidente de carro, se muda para um hotel e simplesmente se nega a ter qualquer relação social. É como se a liberdade plena fosse possível mediante ao não estabelecimento de vínculo, pois vincular é manter uma certa dependência afetiva.
Ela ainda não estava nessa fase. Acreditava que não precisava abandonar o que foi. Não precisava jogar fora o guarda-roupa, mas olhar para as roupas, evitar repetir as mesmas e imaginar outras combinações de looks. Refletiu que fazia há dezena de anos o mesmo caminho para o trabalho e quis elaborar outros trajetos e que, inclusive, poderiam ser feitos com vários meios de transporte e não apenas o que estava acostumada, afinal, não inventava as ruas, nem os caminhos, mas inventaria o caminhar.
Terminou a noite organizando fotos e não sentiu saudade. Nem da infância agridoce, nem da adolescência azeda, nem da vida adulta de todos os sabores. Sentiu falta do que não foi, do que em algum momento sonhou e depois se esqueceu. Nascia ali a vontade de desempacotar sonhos e o encorajamento para mudar. Voltava em si a vontade de festejar a vida.