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Começo parodiando Simone de Beauvoir “Não nascemos professores. Nos tornamos professores” haja vista que é um movimento contínuo que exige mudança, ressignificação, reflexão, novas práticas. E se é para falar de mudança, é interessante o mito de Sísifo. Diz a história que ele foi um homem muito esperto que conseguiu em vários momentos enganar os deuses, trazendo para si a ira deles. Daí, quando morreu, foi condenado a empurrar uma rocha até o topo da montanha e assim que ela rolasse, ele repetiria o mesmo procedimento pela eternidade, evidenciando que o castigo é a repetição.

Mas o que isso se assemelha ao trabalho docente? Se estamos dando aula praticamente do mesmo jeito que 20 anos atrás, se pretendemos nos relacionar com os nossos estudantes do mesmo modo que 20 anos atrás, estamos escravos de um destino. E o problema é que não houve um deus que fez isso, mas uma autocondenação, que traz esse peso da rocha para costas, deixando a marca do mal humor, da dor, apatia, sem vontade de fazer mais nada a não ser empurrar o ensino até o final do ano e no seguinte fazer a mesma coisa. Ora, e por que isso é um castigo? Porque nos desumaniza, nos retira um dos elementos pelos quais nos diferenciamos dos outros seres vivos que é a criação.

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Não há dúvida que na natureza encontramos engenharias perfeitas. A abelha faz a colmeia maravilhosamente bem, a formiga monta andares de formigueiro e a aranha tece a teia com toda uma distribuição uniforme de linhas. Contudo, estão programadas geneticamente a fazerem isso. Nós seres humanos não. Nos lançamos para o futuro no nosso processo criativo e podemos fazer inúmeras façanhas… escrever uma poesia, cantar uma música, preparar um jantar, consertar um chuveiro, cuidar do jardim.

Se estamos nesse lugar de docência, é porque houve uma escolha. E o professor não precisa abrir mão de quem é. Não precisamos nos abandonar. Aliás, a escola pública se faz nessa beleza do encontro com a pluralidade e o professor que também é músico, pode em algumas aulas ensinar com melodias; o professor que gosta de artesanato, pode se valer de em determinadas situações ensinar a preparar jogos pedagógicos e assim por diante. Nisso vamos criando o gosto pelo aprendizado, no encontro com nossa autenticidade e fugindo de um perfil inflexível característico da Síndrome da Gabriela, “eu nasci assim, eu cresci assim, eu sou mesmo assim… Gabriela”.

Criar a potência para aprender é o que caracteriza a alegria crítica. Esse termo é utilizado pelo professor Celso Vasconcelos para enfatizar que a alegria de estar na escola por parte dos alunos não pode se restringir ao horário do recreio. Alegria aqui não é palhaçada, zoação e professor não precisa ser comediante. Alegria é no sentido de energia, de uma aula que motive o aprendizado ao ponto de os estudantes manifestarem a satisfação em realizar uma equação, escrever um bom texto ou conseguir falar em público.

Nesse afeto, diante do vínculo manifesto pelo incentivo de ir além da concretude, é uma das razões também da educação escolar. Na criação desse afeto, criamos condições de nos humanizar em comunhão, característica nossa que não podemos abrir mão, pois embora haja muita informação na internet, ela ainda não substitui a relação professor e aluno. Até porque na internet pode haver o objeto do conhecimento, mas nada ou muito pouco se saberá sobre quem é esse internauta, e, portanto, seu modo de vida, percepções, sensos comuns não serão trazidos como ponto de início na jornada do conhecimento.

Além do papel do professor ser diferente do comediante e da internet, é diferente do apresentador de jornal. Na educação a formação é contínua e o mesmo conteúdo é visto sob vários ângulos e em vários momentos da vida escolar, justamente porque exige sistematização do saber para que haja um aprofundamento sobre aquele objeto do conhecimento. Difere do Jornal Nacional que um dia fala de terremoto na Turquia, no outro sobre guerra na Palestina e no outro sobre a final de um campeonato, mas não exige contextualização, compreensão histórica dos fatos, tudo é rápido e instantâneo para ser digerido, tal como um Nissin Miojo.

Portanto, ser professor difere de uma repetição de Sísifo, mecânica, acrítica, mas também deve fugir da elaboração de macarrão instantâneo, raso, sem nutriente, sem sustança, que trata de forma pontual o que deveria ser sistematicamente digerido. De pouco adianta semanas abarrotadas de palestras, aulas “blitz”, cada uma sobre uma coisa, sem relação com o currículo que está sendo trabalhado ou sem o compromisso com uma realidade social verdadeiramente democrática.  

Afinal, educação deve existir para empoderar os estudantes com conhecimentos que dificilmente viriam em suas casas, verdadeiros legados da humanidade e que temos como princípio democrático torna-los acessível de modo que sirvam como processo humanizatório e de instrumento de luta para uma sociedade justa.

Para isso, devemos lembrar, portanto, que nosso papel é duplo: ter conhecimento sobre nossa área do saber e de ser especialista em gente. Se o marceneiro transforma a madeira em mesa, o pedreiro transforma cimento e tijolos em casa, nosso trabalho é a transformação do aluno na sua melhor versão, física, intelectual, moral, política, social, mediante a nossa arte do encontro, com o estudante e com o saber.