A dona de casa Kennia, 35, fala do rompimento da barragem no Córrego do Feijão com um olhar peculiar. Ela afirma que, dias antes, o espírito da morte estava assolando o lugar. A filha mais nova acordava assustada, durante a noite, e outros fatos estranhos aconteciam. “Não conseguia dormir nesses dias agora não. Parece que tinha um trem atentando a gente, de noite, cachorro latindo, com coisa que tinha alguém arrebentando com ele, você chegava lá e não tinha nada. Parecia que tinha gente na beira do portão, na hora que você ia ver não tinha ninguém”, relata.
Voluntária na Assembléia de Deus, ela morava com os quatro filhos e o marido na Rua Um, Córrego do Feijão. O esposo construiu o imóvel aos poucos, com capricho e dedicação. Porém, hoje a casa dela fica às margens de um grande, fedido e desgraçado cemitério de lama.
Durante a entrevista, ela demonstra que tem fé e fala de Deus a todo momento. Inclusive, revela que já esperava a tragédia. Segundo Kennia, dias antes do rompimento da Barragem do Fundão, em Mariana (MG), lá em 2015, ela teve uma visão que mostrava o Córrego do Feijão sendo devastado pelo barro. Por isso, sempre soube que morar ali não era definitivo na vida de sua família: “Meu sonho naquele lugar acabou desde o dia que Deus me deu esse sonho”.
O local onde ela mora atualmente também é provisório. Junto dos quatro filhos, ela está em um hostel de Casa Branca, bairro de Brumadinho próximo ao Córrego do Feijão, pago pela Vale. O local ainda recebe outra família: Jucimara Macedo de Oliveira, 18, dona de casa, o marido Igor Rodrigues da Silva, 23, pedreiro, e a filha de um ano.
As duas famílias eram vizinhas e agora moram juntas. A lista de amigos e conhecidos que foram mortos pela lama é grande e os rejeitos por pouco não atingiram suas casas. “Eu estava amamentando minha filha, a energia acabou, as telhas estavam balançando. Ouvi gente gritando e saí pra rua”, lembra Jucimara.
Para todos que estão no hostel, paira a dúvida constante: o que será feito das suas vidas? Depender da lenta Justiça e ficar nas mãos da Vale é o que causa mais angústia. Igor reclama da falta de serviço. Ele quer trabalhar, não aguenta continuar parado: “Eu tô querendo saber o que vai acontecer pra poder arrumar um trabalho. Não dão posição de nada pra gente. Se eles falarem que vão me dar um trabalho, eu fico é feliz. As contas tão avançando ainda mais”.
Na hora do rompimento da barragem, Igor estava trabalhando no Tijuco, outra comunidade de Brumadinho. Ele teve que dar a volta por Belo Horizonte para conseguir voltar, porque o caminho principal estava bloqueado pela lama.
A dificuldade de transporte também faz o marido de Kennia ficar longe da família. Ele trabalha como horticultor em Brumadinho, mas para chegar ao Córrego do Feijão, com a estrada bloqueada, o caminho é longo. O trajeto, antes feito em 30 minutos, agora demora cerca de duas horas. Por isso, ele dorme no serviço, em um saco de estopa.
Kennia é quem mais fala durante a nossa passagem pelo hostel. A dona de casa conta várias histórias, lembra com saudades das belezas naturais do Córrego do Feijão e acredita que essa tragédia vai servir para Deus trabalhar por mudanças. Entre tantas memórias, uma chama mais atenção: em frente à casa dela funcionava um restaurante, cujo dono era um morador local, onde comiam os funcionários da Vale. Isso, claro, antes da empresa fazer o próprio refeitório e assim condenar à morte os funcionários. “Olha procê ver, tirou da porta da minha casa pra comer lá dentro da Vale e matar todos eles enterrados vivos”, resume.
O futuro dessas famílias, assim como de muitas outras, é nebuloso. As vítimas do barro em Mariana, lá em 2015, até hoje vivem dependentes da Vale e moram onde a empresa manda. Por enquanto, está longe a ideia de juntar novamente a comunidade e ao menos tentar devolver a rotina que tinham antes da tragédia.
A Kennia, a Jucimara e o Igor não querem voltar para o Córrego do Feijão. Seus pertences ainda estão lá, dentro de casa, e hoje tudo o que têm são doações.
A opção de voltar a viver por lá não existe. Os motivos são muitos, como a vista para a tragédia, o rememorar constante das vidas perdidas e o cheiro podre que emana do barro. E tem mais um, que a Kennia explica: “Minha casa não vale uma caixa de fósforo. Se eu te oferecer aqui e agora a minha casa, lá no Córrego do Feijão, você compra?”.
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