Nascida e criada em Poços de Caldas, a pedagoga Gláucia Boaretto é um dos principais nomes locais na luta pelos direitos dos deficientes. Diretora institucional da Associação dos Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE), ela já foi vereadora e vice-prefeita.
Há mais de 30 anos na instituição, Gláucia pretende se dedicar à APAE ainda por muito tempo. Mesmo acompanhando os avanços na causa, ela reclama que muitas coisas faltam. Falta acessibilidade na rede hoteleira, falta sensibilidade dos empresários para a inclusão dos deficientes no mercado de trabalho, falta vontade política para executar o que está nas leis. Mas durante a entrevista percebemos que uma coisa é certa: o que não falta, para Gláucia, é conhecimento de causa e amor por Poços de Caldas.
Poços Já: Como foi o início da sua história com a APAE?
Gláucia: É uma história de vida bonita. Quando eu comecei na APAE ela ainda funcionava no Colégio São Domingos. Eu fui como estagiária do meu curso de magistério, através de uma solicitação do professor Ramiro Canedo. Foi desse estágio que existiu uma paixão e estou aqui até hoje.
Poços Já: Quando foi isso?
Gláucia: Tem 36, 37 anos. É muito tempo. Estava recém-formada no magistério, ainda não tinha o curso de pedagogia, estava estudando mesmo. Apareceu essa oportunidade e cá estou. Vim para cá como professora, fiquei dois anos, e depois como coordenadora pedagógica e depois como diretora da escola. E hoje como diretora institucional.
Poços Já: Por que a senhora ficou na APAE tantos anos?
Gláucia: Até hoje também eu me pergunto, mas acho que a causa é nobre. A gente vem de uma família que tem uma base de valor e de trabalho ao próximo. É uma coisa de identidade mesmo. Eu acho que devo ter alguma coisa com eles (aponta para cima) que não é nem dessa existência, pode ser de outra.
Poços Já: Quantos anos tem a APAE em Poços?
Gláucia: A APAE está com 43 anos.
Poços Já: O que mudou de 30 anos para hoje?
Gláucia: Nós tínhamos 13 alunos só. Hoje nós temos 640. É uma história de crescimento, de aprendizagem, é uma vida que todo dia você tem uma oportunidade de aprender coisas diferentes com esses seres maravilhosos que Deus nos deu para cuidar.
Poços Já: Como foi esse crescimento?
Gláucia: A APAE acompanhou, cresceu, à medida que a própria concepção da pessoa com deficiência também evoluiu. Ela vem daquela etapa onde os jovens, as crianças, eram guardados. E hoje estão aí ocupando seu espaço na vida pública, nos conselhos de direito.
Poços Já: A concepção mudou, mas a APAE colaborou para isso.
Gláucia: Com certeza. Eu acho que isso foi porque a nossa Constituição já traz esses direitos todos garantidos, mas direitos esses nunca cumpridos. Até hoje a gente sente que o preconceito ainda existe, que a política pública em si não cobre com os direitos iguais, com as oportunidades iguais. O papel da APAE é buscar isso, é entender, é estar atenta à capacitação tecnológica dos seus técnicos, do seu fazer, em busca de políticas públicas que venham a atender a necessidade de todos da mesma forma, com a mesma oportunidade.
Poços Já: O que mudou no atendimento?
Gláucia: Hoje temos uma equipe técnica, principalmente com mais de 37 profissionais de nível superior, entre médicos, psicólogos, fonoaudiólogos, psiquiatras, neurologista, pediatras, clínico de adolescente, terapeutas ocupacionais, pedagogos, psicopedagogos. Tem uma gama de profissionais que não existia antes. Houve uma busca, um crescimento. A APAE hoje podemos dizer que é uma empresa de médio para grande porte em Poços de Caldas. Nós temos aqui mais de 120 funcionários. É uma senhora empresa.
Poços Já: E como a APAE se mantém?
Gláucia: Para se manter, ela tem convênios com o governo municipal, estadual e federal. Hoje é uma prestadora de serviços para o Sistema Único de Saúde e também para o SUAS, o Sistema Único de Assistência Social, e na área de educação. Tem três grandes núcleos de atuação: a promoção social, a educação e a saúde da pessoa com deficiência.
Poços Já: Ainda existe preconceito?
Gláucia: Ainda existe sim. A proposta ideal de inclusão é muito aquém ainda da real necessidade. Nós temos um discurso que às vezes a prática o contradiz. A inclusão está aí, as escolas todas de portas abertas, o mercado, o esporte, o lazer. Mas quantos estão lá? Com sucesso e com permanência? Isso faz diferença.
Poços Já: O que a APAE faz nesse sentido, da inclusão?
Gláucia: A pessoa com deficiência tem uma escola especial, mas tem a oportunidade de estar também na escola comum. A APAE é uma propulsora da inclusão, quer seja na escola, quer seja no trabalho, quer seja nas políticas públicas. Hoje nós temos mais de oitenta jovens no mercado de trabalho, com carteira assinada, incluídos pela APAE. Neste mês nós teremos uma atividade fabulosa. De 22 a 24 de outubro nós estamos recebendo em Poços de Caldas o 10º Festival Estadual Nossa Arte. É onde a pessoa com deficiência intelectual e/ou múltipla mostra o seu trabalho através da dança, da música, do folclore, da literatura, das artes visuais. Vamos estar com 770 pessoas em Poços de Caldas, mostrando o trabalho todo do estado de Minas.
Poços Já: A rede hoteleira está pronta para receber essas pessoas?
Gláucia: Nós temos o Íbis, que tem três quartos adaptados. Mas nenhum hotel de Poços, com exceção de algumas rampas, tem acomodações adaptadas não só para a pessoa com deficiência, mas para o idoso. É uma demanda de serviço para a política pública, para a nossa rede hoteleira, que nos recebeu muito bem. Tem hotéis que estão tirando porta de box para uma cadeira entrar. Mas tem aqueles em que não podemos colocar, porque não comportam. Isso ainda é triste para Poços de Caldas. Foi muito triste ir de hotel em hotel e não achar.
Poços Já: Mas vai ser possível acomodá-los?
Gláucia: Não como deveria ser. São pessoas que vão ter que ser carregadas, não se sentindo independentes, sobressaindo a deficiência e não a competência delas enquanto artistas.
Poços Já: Voltando ao assunto do mercado de trabalho, provavelmente são pessoas que valorizam muito os empregos que conseguem.
Gláucia: Com certeza. São melhores funcionários do que eu e você, não tenho dúvida. A responsabilidade, o compromisso, a dedicação, o querer fazer deles é tão prazeroso, tão grande, que eles se superam dentro dos seus limites. Além de humanizar o ambiente de trabalho, mostram que são importantes no funcionamento de uma empresa. Não resta dúvidas. Até o ambiente de trabalho acaba sendo mais harmônico quando você tem uma pessoa com deficiência ao seu lado. Não atrás de você, mas ao seu lado, trabalhando com você. Isso faz diferença.
Poços Já: Há algo que possa ser feito para incentivar as empresas?
Gláucia: Isso parte de cada um. A lei está aí, é uma obrigatoriedade. Mas vai da sensibilidade dos gerentes, dos proprietários, dos empresários, de entender que toda e qualquer pessoa pode desempenhar uma função. É preciso dar uma oportunidade.
Poços Já: Qual a faixa etária dos alunos?
Gláucia: De zero a setenta. Se você andar pela APAE agora à tarde, vai perceber que tem um leque de pessoas idosas.
Poços Já: E como é esse relacionamento entre as crianças e os idosos?
Gláucia: Normal, de cuidado inclusive. A dúvida é minha e é sua, deles não. Eles são tão iguais, não se percebem diferentes.
Poços Já: Os bebês conseguem ter um desenvolvimento melhor do que os que chegam com uma idade mais avançada?
Gláucia: Hoje, com o processo de conscientização, com a evolução, com as novas concepções, eles estão chegando mais cedo. Eu recebo bebês todos os meses. A gente pode inferir uma aceleração de uma habilidade e minimizar uma dificuldade. Nós temos casos de muito sucesso. Não tenho mais na APAE as salas de educação infantil, porque ele vem bebê e está lá dentro da creche, da escola comum. A APAE dá o suporte ao professor que está lá, à família que está lá. E ele vem à APAE apenas para o atendimento especializado.
Poços Já: Dentro desse processo de crescimento da APAE, foi possível também diminuir as limitações dos alunos?
Gláucia: Sim, com certeza. Hoje eu tenho, dentro da nossa entidade, dos programas que a APAE desenvolve, uma gama maior de pessoas mais velhas, com mais idade. Porque as mais novas já foram. É aquele que não teve acesso ao atendimento na idade precoce, não teve o seu desenvolvimento acelerado por um atendimento especializado.
Poços Já: Existe uma fila de espera pelo atendimento?
Gláucia: Hoje eu tenho uma fila de espera para triagem, porque a APAE tem uma equipe que é uma das únicas a fazer um diagnóstico, encaminhamento e atendimento dessa pessoinhas pequenas. Elas têm prioridade. O bebê não pode esperar. Eu tenho uma fila de espera para a faixa etária de sete anos. Já foi pior, já houve fila de espera que ultrapassava anos. Hoje não. Ela flui, mas ainda tem uma fila de espera.
Poços Já: Tem algum projeto de expansão da escola, para zerar a fila?
Gláucia: Não é a expansão da escola. Não amplio porque não tenho um aporte de recurso público de qualquer uma das três esferas que me dê suporte para ampliar essa equipe de diagnóstico. Mantenho na APAE cinco equipes de diagnóstico, para faixa etária tenho uma equipe. Esse ônus a APAE arca sozinha, então é pesado. Para nós, é um serviço de R$17,8 mil reais/mês. Mantenho com eventos, feiras, bazares.
Poços Já: Nestes eventos, a comunidade tem bastante dedicação?
Gláucia: Tem, Poços é solidária por natureza. Eu acho que é uma cidade diferenciada, privilegiada. Para você ter uma ideia, Poços de Caldas tem um número enorme de entidades de assistência social que nenhum outro município tem. Se nós pegarmos, no próprio segmento que a APAE atua, que é a pessoa com deficiência, Poços tem hoje a AACD, ADEFIP, AADV, a Tarso de Coimbra. Quantas cidades têm isso, para atender a pessoa com deficiência? Na área visual, na área auditiva, na área física? Não tem. Poços é privilegiada. A política pública de hoje, atualíssima, prega para não dar esmolas, promover o cidadão. Nós temos o exemplo do SOS, que começou o seu trabalho nos pedindo para não dar esmola. Tinha a Dona Elza, que tinha uma cabeça progressista, à frente do tempo dela. Poços é diferente. Poços é uma cidade de gente solidária.
Poços Já: Vocês também atendem pessoas de outras cidades?
Gláucia: Sim, até do estado de São Paulo. Hoje, o maior município aqui dentro é Caldas. Vem para Poços de Caldas, duas vezes por dia, um ônibus trazendo as pessoas que de lá precisam de um atendimento especial. Mas tem também de Divinolândia, Campestrinho, Águas da Prata, de todos esses lugares.
Poços Já: Como a senhora avalia os período como vereadora?
Gláucia: Eu fui uma pessoa muito feliz. Pela Câmara, conseguindo atuar em situações diferentes. Pude presidir uma Comissão de Justiça, que exigia da minha pessoa uma articulação com os nossos pares, para que buscássemos o bem comum. É essa a função do vereador. É um exercício extremamente gratificante sentar com pessoas de ideologias diferentes, mas de pontuar que o nosso ideal era o povo de Poços de Caldas. Isso era muito bom, eu gosto disso e fiz com muito gosto. Respeito aquela casa de leis, uma casa exemplar, uma casa enxuta e que tem um grande trabalho, grandes pessoas que se doam para a política. Tenho saudades daquela casa sim, mas não penso em voltar tão cedo (risos).
Poços Já: E na prefeitura?
Gláucia: Eu tive a honra de estar vice-prefeita por quatro anos. Não fui uma vice-prefeita comum, trabalhei dentro de duas grandes secretarias, não fiquei no gabinete de vice-prefeita. Assumi uma secretaria de Administração por quase dois anos. Infelizmente perdemos o nosso primeiro secretário. E fiz com muita responsabilidade e muito apoio por parte dos funcionários públicos. Assumi uma secretaria de Governo, que também é outra grande responsabilidade, que demanda tempo, demanda dedicação. Mas que, tão igual à Administração, tem uma equipe de ponta de trabalho, que não te desampara. Houve alguns ônus politicamente? Houve. Mas a minha responsabilidade maior era com a nossa gente.
Poços Já: Como foi ficar entre seu partido e o prefeito, que estavam rompidos?
Gláucia: Quando houve uma ruptura política do prefeito com o qual trabalhava com o partido ao qual eu sou ligada, eu em momento algum diminuí meu ritmo de trabalho. Eu honrei até o último dia, indo à prefeitura e trabalhando, respondendo com responsabilidade e fidelidade àqueles que votaram na gente.
Poços Já: Não pretende voltar tão cedo, mas pretende voltar?
Gláucia: Eu não sei, o futuro a Deus pertence.
Poços Já: Gostaria?
Gláucia: Eu acho que estou nesse mundo para servir. No momento eu estou servindo a APAE que, como qualquer outra entidade, passa por muita dificuldade. Eu gosto, eu amo o que eu faço. Ao mesmo tempo eu tenho o lado familiar. Eu fiquei muito tempo fora de casa, no tempo em que estive na vida pública, porque você acaba não tendo tempo. Você acaba deixando mesmo, você deixa o almoço de domingo, o passeio de sábado. Com a APAE também você deixa, mas muito menos. Eu tenho filhos, o tempo vai passando e os filhos estão moços. É preciso a gente acompanhar. Contribuir sim. Nossa, de qualquer forma que eu puder contribuir com a nossa cidade, se eu puder estou aqui. Mas no momento me dedicando integralmente à APAE. E desejando sucesso a quem estiver lá, com certeza.