“Mas a mineiridade – enquanto sinônimo de autêntica brasilidade – e a cordialidade simples, rio Grande acima, se um dia foram sufocadas, renascem agora em iniciativas promissoras, como ocorrem, até o final de semana, em Poços de Caldas”. Este trecho do editorial publicado no jornal O Estado de São Paulo, em 12 de agosto de 1984, fala da segunda edição da Festa Uai, realizada em Poços desde 1983.
Neste mês, entre os dias 19 e 23, será realizada mais uma edição. Desde o início, a Festa destacou o folclore, a música e a culinária de Minas Gerais. O Poços Já entrevista a criadora do evento, Margarida Valente. Sempre aos risos, ela lembra a história da Festa Uai e conta “causos” que marcaram a sua carreira como produtora cultural.
Poços Já: Por que a senhora criou a Festa Uai?
Margarida: É uma festa legal, que veio para despertar nas pessoas a descoberta do seu íntimo, da sua cultura, de gostar do que você é. Aqui em Poços, e acho que em todo lugar na época, era bom o que vinha de fora. Tudo que era americano era bonito. Tinha gíria em inglês, pratos chiques eram só os franceses. Quando eu fui para a divisão de cultura, em 1983, eu tive a ideia. Eu era só funcionária pública. Eu nasci numa cidadezinha pequena, Divisa Nova (MG). E lá, essas coisas eram a vida das pessoas. A gente tem que valorizar primeiro aonde a gente veio, as nossas raízes, para ver onde queremos chegar.
Poços Já: Como foi o processo de criação?
Margarida: Não tinha um restaurante de comida mineira aqui em Poços de Caldas. Moda de viola, no rádio, era só até as sete horas da manhã. O povo tinha vergonha de cantar uma moda de viola. O que eu fiz com a Festa Uai? Levei a moda de viola para cima do palco, a nossa cultura para o palco. Foi uma loucura, o secretário não acreditava que eu estava fazendo aquilo, começar uma festa com o terço dos três santos de cima do palco.
Nós estávamos saindo da ditadura e ganhamos a eleição, o nosso prefeito foi nomeado, o José Aurélio Vilela, depois foi o Adnei (Pereira de Moraes). Eu fui ser chefe da Divisão de Cultura como funcionária pública e o Sérgio Manuci foi ser o secretário. Dentre os projetos que eu fiz na época eu fiz esse, a gente queria fazer tudo. Queria abraçar o mundo.
O povo tinha me encostado, porque meu marido era vereador do MDB. Na época tinha Arena e MDB, quem era do MDB era o cão. Nós fomos perseguidos, não podia falar nada. A cultura popular era muito perseguida e eu sempre fui amante da cultura popular, gosto até hoje.
Poços Já: A primeira festa foi ali atrás do Palace, certo?
Margarida: A primeira festa foi atrás do Palace. Um tostão nós não tínhamos. Eu resolvi fazer a festa e falei pro Sérgio: “Quero fazer esse projeto aqui”. Ele falou: “Ah, põe aí e depois eu vejo”. Aí eu coloquei num cantinho da mesa. Passou uma porção de dias e ele não via. Como ele não viu, eu muito desaforada, fui na prefeitura e protocolei. Ele tinha prazo para me dar resposta. Aí ele falou: “Convoca o povo ligado à cultura para discutir isso aí”. De um dia para o outro eu convoquei, foram 60 pessoas. O pessoal de cultura é assim, um começa a falar aqui, o outro puxa pra lá, é uma loucura. Na hora que falou da Festa Uai, gente do céu, pegou fogo. Aí o Sérgio falou para formar uma comissão. Formamos a comissão e falei para o Sérgio que estava aprovado. Ele falou para fazer outra reunião. Eu falei “Não, agora eu faço a festa”.
Poços Já: Qual foi o impacto da festa?
Margarida: Pouco tempo depois que a gente fez a primeira, muita gente começou a abrir restaurante de comida mineira. Agosto era um mês que dava folga para pessoal de hotel, garçom, Poços não tinha nada em agosto, era um cemitério. Agora você vê como está a cidade em agosto. Os postos de gasolina faturam, os hotéis lotam, a cidade tem uma movimentação diferente. Para o comércio e o turismo foi muito bom. O povo depois de um certo tempo vinha só para a Festa Uai mesmo.
Poços Já: A imprensa apoiava?
Margarida: Foi difícil também para o povo aceitar, olhavam a gente meio de banda. Fui muito criticada porque teve um pessoal, da esquerda mesmo, que achava que estava errado. Arrumei patrocínio da Alcoa. Como não tinha dinheiro, onde eu ia arrumar? Teve um rapaz que fez dois artigos contra mim no jornal que eu fiquei pê da vida. Eu mandava carta para tudo que é jornal, fazia uma divulgação boa. O cara recebeu essa carta e telefonou para mim e eu dei uma entrevista. Menino, domingão, editorial. Sim, eu era editorial do Estadão. Eu falei: “Esse povo me paga”, eu era desaforada. Mandei ler dez vezes o artigo do homem na festa. Na festa seguinte, mandei botar no folheto. Tão pensando que nós somos pouca porcaria? Eu me divertia.
Poços Já: A Festa Uai foi o seu primeiro trabalho como produtora cultural?
Margarida: Eu fiz tudo junto. Fiz a festa Uai e um projeto muito bom que chamava Arte na Praça. Um dia o Tião Brochado chegou para mim e falou de uns meninos do Colégio Pelicano que tocavam muito bem e pediu oportunidade para eles na Urca. Era a Banho de Som. Quase me bateram na secretaria, por colocar os meninos do rock no teatro. Aí fizemos um showzinho na Urca. Acho que o Pedro Bertozzi que era vocalista. Quando eles começaram a tocar o povo subiu tudo nas cadeiras. Eu vim quem nem uma doida lá de trás falando pra mandar descer. Aí eu fiz o projeto Arte na Praça. Botei artes plásticas, o varal da arte, fiz também com teatro. Tinha um cara, Délcio, que fazia escultura, levava o barro para a rua e ensinava o pessoal. O que gastava da prefeitura era um palco e o som. Domingo, quatro horas da tarde. Foi a época que as escolas de música encheram de meninos. Depois eu desenvolvi o Salão Bruno Felisberti, nós tínhamos exposições a cada 15 dias, exposições coletivas dos artistas de Poços. Exposições individuais também, teve um curso muito bom com os artistas da UFMG, os bons artistas de Belo Horizonte. Porque aqui eles eram autodidatas. A partir daí, eles deslancharam.
Poços Já: Como começou a Valente Produções?
Margarida: Meu marido era vereador, sempre da esquerda. E depois a gente perdeu a eleição. A gente era funcionário público, continuamos na prefeitura. Mas nessa época, em 1989, me tiraram as funções, o direito de trabalhar. Para mim foi a coisa mais triste do mundo. O Toninho toda tarde ia tomar café comigo na rodoviária. Um dia ele falou para mim: “Liga para os artistas, os seus amigos. Vamos produzir alguma coisa”. Aí eu fiz o seguinte: liguei para o Taiguara. Depois liguei para o Nerso da Capitinga, tinha lançado ele no sul de Minas. O Nerso estava na Escolinha do Professor Raimundo, nessa época fiz também a Fernanda Montenegro com Dona Doida, César Camargo Mariano. Tudo no Ultravisão.
Poços Já: E como foi a repercussão disso?
Margarida: O Nerso fizemos três sessões num dia só. Três mil pessoas. Eu achei bom, porque começamos a ganhar dinheiro. A gente estava acabando de mudar para cá. A geladeira chamava Fernanda Montenegro, o tapete da sala chamava César Camargo Mariano. A grade da frente era Nerso da Capetinga. E assim foi, nasceu a Valente Produções. É como falava o Júlio Bonazzi, que foi meu professor de matemática: “Muitas vezes, um bom pontapé na bunda te atira muito mais longe do que um afetuoso aperto de mão”.
Poços Já: Esse público, que lotou três sessões em um dia, ainda existe em Poços?
Margarida: Nunca mais aconteceu isso. Foi uma coisa tão estranha. O show era no sábado, na terça-feira esgotaram os ingressos. Os ingressos chegaram 11 horas da manhã, cinco horas da tarde não tinha mais nenhum. Abrimos uma sessão coruja, à meia noite, e esgotou.
Poços Já: Em tempos de crise econômica o público continua indo ao teatro?
Margarida: A gente tem trazido mais stand up. Já trouxemos peças ótimas, mas para trazer uma peça grande demanda transporte de cenário, estão cobrando três reais por quilômetro rodado. Aí tem transporte do artista, a divulgação toda. Uma produção hoje, bem feita, fica em quase dez mil reais. O nosso teatro tem 389 lugares. E não te dão meio a meio, são uns 30 ou 40%.No stand up não gasta muito, no máximo três pessoas que vem. Eles são bons e o teatro lota. Mas que eu adoro fazer um teatro eu adoro.
Poços Já: A senhora cuidou da Festa Uai em todas as edições?
Margarida: Efetivamente eu fiquei à frente dela até em 1988. Mudanças políticas. Aí depois sempre alguém me chamava. Em 2000, o Poli me chamou para ajudar a mudar a festa de lugar. E eu fui. Um desafio, porque a festa estava crescendo muito. É incrível, mas não valorizam a cultura. Valorizam o show. Para levar para lá tem que ter um show bom, o povo não via para ver o folclore. Em 2004 eu fui para ajudar o Waldemarzinho. E agora veio essa situação de voltar, para mais um socorro. Mas a gente sempre esteve lá junto. De uns cinco anos para cá eu resolvi fazer projeto da lei de incentivo, porque a gente tem direito sobre isso, e colocar lá dentro da festa para estar perto. Estava descaracterizando muito. Não pode botar Toquinho na Festa Uai, Elba Ramalho, Leci Brandão.