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Poços de Caldas

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Mortas, violentadas e oprimidas

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Andréa Benetti é fundadora de uma das maiores páginas de feminismo do Brasil, a "Moça, Você é Machista".
Andréa Benetti é fundadora de uma das maiores páginas de feminismo do Brasil, a “Moça, Você é Machista”.

Em menos de um mês, Poços de Caldas perdeu quatro de suas mulheres. Todas assassinadas. Mesmo em tempos de Maria da Penha e feminicídio como crime hediondo, a legislação não consegue frear as estatísticas de mulheres violentadas.

O Poços Já conversou com a professora Andréa Benetti, que também é uma das fundadoras de uma das maiores páginas de feminismo do Brasil, a “Moça, você é machista”. No Facebook, são 484 mil curtidas. Ela sabe que a educação é o melhor caminho para mudar a cultura de opressão, mas que precisamos de medidas urgentes para conter a violência que parece estar institucionalizada.

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Poços Já: É comum que as próprias mulheres sejam machistas?

Andréa: É comum, porque a gente é criada em uma sociedade que é machista, a nossa criação é machista, então a gente reproduz. Eu não vejo muita diferença de falar que a mulher reproduz o machismo ou que ela é machista. Tem feminista que não usa esse termo, que a mulher é machista. Eu coloco assim, mas algumas pessoas não gostam. Na prática é a mesma questão. A diferença da mulher e do homem é que o homem acaba tendo alguns privilégios em cima do machismo e se coloca na figura do agressor, na maioria das vezes. A mulher, infelizmente, muitas vezes assume um papel de opressão.

Poços Já: Como que se manifesta esse machismo?

Andréa: Principalmente na questão do reforço da fala de julgamento de outras mulheres. Quando morre uma mulher é muito comum ouvir que ela mereceu, que ela era vagabunda, que ela se envolveu com gente errada. A justificativa de estupro também é muito comum vinda das mulheres. E sobretudo a criação das crianças é machista, ainda fica muito a cargo da mulher. Isso é muito fácil perceber. Acho que uma das falhas, um dos entraves do feminismo atual, é que a gente não admite isso, não pega para a gente a responsabilidade de mudança de atitude.

Poços Já: Como e quando surgiu a página?

Andréa: A página surgiu há três anos quase, em setembro vai fazer três anos. Eu fazia faculdade ainda e tem um amigo, que estudava comigo, que é transexual. E tinha uma página muito famosa, que se chamava “Moça, seu namorado é machista”. A gente ia lá e os comentários de reforço de machismo eram quase todos de mulheres. Na época a gente não tinha essa militância tão construída, teórica e tal, a ponto de perceber o perigo da fala. Para algumas pessoas parece acusatório, mas quando a gente fez a gente não tinha essa noção. Por conta do nome não ser tão ligado ao feminismo, a página cresceu muito, até talvez mais do que as outras. Atinge um público que não é muito teórico, o público leigo.

Poços Já: Por que você acha que conseguiram tantas curtidas?

Andréa: Eu acho que porque as mensagens são curtas, fáceis de serem lidas e principalmente porque elas falam do cotidiano. Então eu falo: “Acha que mulher de saia curta é vagabunda? Moça, você é machista. Quando o seu marido faz o serviço de casa você acha que ele te ajuda? Que não é o papel dele?”. É o que a gente vive no cotidiano. Aí uma pessoa compartilha, a outra vê e isso fez ela crescer muito rápido. Mas foi uma surpresa pra gente, o crescimento foi meteórico, muito rápido mesmo.

Poços Já: Vocês recebem muitos relatos de agressões?

Andréa: A gente tem muito relato, sobretudo de abuso sexual, que é chocante. Pedidos de ajuda, ou perguntas de como se encaminha questões de violência, que são sérias. Também tem muitos relatos de pessoas falando de como a página fez mudar a visão, senhoras mais velhas que tinham um casamento de abuso e não percebiam, é assim o tempo todo.

Poços Já: Tem alguma história que te marcou mais?

Andréa: Sempre tem. Meninas abusadas com nove, dez anos, adolescentes que vão contar pra gente. Acho que as situações de abuso são mais marcantes para mim, mais chocantes. E são muito comuns. A gente só tem noção dessa realidade quando vai lidar com isso diariamente. Parece que está muito longe, mas o número de mulher estuprada no Brasil é muito alto. O pai é o maior abusador no cenário brasileiro, é chocante mesmo. É complicado lidar. A gente tem como orientar, mas quebrar essas relações que são domésticas é muito difícil. É um papel de educação a longo prazo. A página contribui, mas é lento. É complicado nesse sentido de não poder fazer nada imediato.

Para a professora, educação é a principal medida contra o machismo.
Para a professora, educação é a principal medida contra o machismo.

Poços Já: Muitas pessoas se manifestam contra a página?

Andréa: Tem muita gente, muita mulher. Não é que a mulher é machista, mas às vezes ela tem uma visão de senso comum, de não perceber a violência, acha que acontece sempre na casa da outra, a maioria ainda são homens revoltados em geral com liberdade sexual, o que incomoda muito os homens ainda, e entram lá, xingam, a gente acaba excluindo e pronto. Tem gente que conversa, a gente consegue dialogar. Mas quem vai para atrapalhar a gente tira. Já diminuiu bastante, no começo da página era mais intenso. Derrubaram a página uma vez, o meu perfil pessoal, o perfil do meu filho. Ameaçaram de seguir, sequestrar. A gente teve que mudar o Face, meu filho ficou sem ter Face.

Poços Já: Mas hoje em dia está mais tranquilo?

Andréa: Agora já está mais difícil de me achar. Eu fechei bastante o meu perfil pessoal, mas nos vídeos da página aparece meu nome. Os meninos acho que não tiveram esse problema. Eles tiveram problemas com a transexualidade, porque muitas feministas não aceitam homens trans. Eles sofrem alguns ataques, mas não é nada muito grave.

Poços Já: Essas mortes que ocorreram em Poços são consequência do machismo?

Andréa: Sim, não tenho dúvida. É incrível, um crime parece que puxa o outro. Não sei se porque o agressor pensa que não é tão difícil, que não é punido tão severamente. Quando passa um crime muito forte na imprensa, começam a acontecer outros. Mas a nossa cidade é elitista, machista, racista, classista. Eu entendo que é muito difícil aqui que as ações políticas cheguem às mulheres, sobretudo as de classe mais baixa. A gente tem CREAS (Centro de Referência Especializado de Assistência Social), a gente tem ações, políticas públicas, mas não chegam com eficiência, em massa, às mulheres ainda. Sob o meu ponto de vista, precisaria de ações que ajudem a quebrar o ciclo de dependência, tanto financeiro quanto emocional, da mulher diante do marido. Esperar que a mulher vá até o CREAS quando ela já está em uma situação de agressão eu acho que é muito ingênuo. Quando está em uma situação que em casa não pode nem falar, como que essa mulher vai sair da casa dela, denunciar um homem que mora com ela? Acho muito difícil que isso aconteça dessa forma. Talvez ela esteja errando aí.

Andréa: A segunda questão é que não há nenhum tipo de política que integre educação com a violência, nada, nenhum projeto de discussão, de fala, de debate, de fala sobre violência nas escolas do município. Com um cenário desses, para mim seria a primeira atitude a tomar, para ver se a geração que está vindo consegue romper um pouco com isso.

Poços Já: Educação é importante, mas consegue resultados a longo prazo. O que poderia ser feito de imediato?

Andréa: Certeza que uma medida só não seria suficiente. A gente tem agora a Polícia Amiga, são policiais femininas que passam nas casas, fazem ronda nas famílias que têm agressores já denunciados. A nossa dificuldade é chegar às mulheres que não denunciaram. Eu penso que talvez, se o CRAS (Centro de Referência de Assistência Social) se articulasse com isso e chegasse às mulheres que ganham o Bolsa Família, por exemplo, com um cadastro maior de mulheres e tivesse um trabalho com um psicólogo, semelhante ao que o CREAS faz, mas em todos os CRAS da cidade, quem sabe fortalecesse isso agora. Outra forma é a economia solidária, que tirou do ciclo de violência mais ou menos setenta famílias, trabalhando artesanato com capim pata de vaca. A mulher que tem independência financeira é muito mais fácil de sair do ciclo de violência do que uma mulher que depende do marido para tudo. Tem ações assim. Eu acho que precisa ser rápido e ter várias medidas articuladas. Falar que basta uma só, só a lei do feminicídio, é ingenuidade. Não vale.

Poços Já: O machismo é um problema que aparece em todo o mundo?

Andréa: Tem países que têm um cenário bem melhor. Noruega e Suécia têm um cenário bem melhor. Não são países com legislação mais rigorosa, são países com processo de educação mais eficiente, sobretudo de educação social. E tem o mundo oriental, que ainda é terrível para a mulher. As mulheres do Líbano têm um índice de morte altíssimo, a mulher é considerada ainda mercadoria. São terríveis. No Brasil, por exemplo, o Recife é uma capital que tem um índice de violência tão alto que elas criaram um apitaço na periferia. Então, se uma mulher está apanhando e a outra escuta, elas começam a apitar. São mortes de bater a cabeça da mulher no meio fio, de jogar gasolina, muito parecido com o que está acontecendo em Poços. Eu acho que é alarmante.

Poços Já: Culpar as vítimas também é comum.

Andréa: Isso para mim é um dos principais entraves, que impedem que a gente avance nas políticas e na penalização. É muito fácil convencer um júri. Teve o caso da Bernadete, que o moço foi absolvido. É muito fácil convencer um júri que a mulher não era boa esposa, que mereceu morrer, que ela era alcoólatra. No caso da Aline, sob o meu ponto de vista, ele tentou isso primeiro. Aí não deu certo, ele foi para outro lado, para o ritual de magia negra. Para mim, para escapar da denúncia de feminicídio, que agora é crime hediondo. Agora, o caso da moradora de rua foi horrível. Não teve uma pessoa que não justificou para a questão da droga, de morar na rua. Teve um crime sexual antes. Peraí, a mulher foi estuprada, foi pisada na cabeça, teve um crime sexual antes. Não tem justificativa que possa colocar sobre ela a culpa.

Professora já foi ameaçada devido ao trabalho de luta pelo feminismo.
Professora já foi ameaçada devido ao trabalho de luta pelo feminismo.

Poços Já: A  legislação hoje é rigososa, com a Lei Maria da Penha e feminicídio ter se tornado crime hediondo. Esse seria o caminho?

Andréa: Acho que é uma das medidas possíveis, mas não acho que com lei a gente muda a visão machista de um país. E o investimento em educação? Nas escolas eu não vejo um esforço, nem das autoridades, mas de projeto pedagógico localizado. Aqui em Poços em posso falar, não tem nenhum. Nem debate da questão da mulher, da orientação sexual. Tem a CONAE (Conferência Nacional Livre de Educação e Gênero), que estabelece as discussões de gênero, debate, mas eu não vejo grande força nisso, nas escolas. Eu ainda acho o Brasil extremamente machista. É muito difícil ainda lidar com algumas questões. O casamento civil igualitário só agora ter sido autorizado, eu acho um atraso. Entre outras questões. Aborto nem é discutido no Brasil, quando na França já tem 40 anos de descriminalização. A gente tem um cenário de 200 mil mulheres mortas ao ano. É uma Poços inteira, até mais. É muita coisa, mulher de classe pobre.

Poços Já: Você é otimista com relação ao futuro? Há 50 anos a situação era pior.

Andréa: Eu não tenho certeza, porque na estatística depois da Maria da Penha a gente passa a ter mais denúncia. A gente não consegue estabelecer um gráfico disso. Eu vejo avanços sim, sobretudo na questão de liberdade sexual. No mercado de trabalho, um pouco menos. Você vê que não tem ainda a equiparação de salário. Tem alguns avanços, tem alguns entraves. Pelo nível de inserção no mercado de trabalho que a mulher tem, de estudo, a gente está morrendo muito ainda. Muito mesmo, uma atrás da outra. E as crianças, a filha da Aline foi morta. Isso me deixa um pouco preocupada e ainda volto na questão da educação.

Poços Já: Como você vê o comportamento dos adolescentes nas escolas?

Andréa: Essa turma de adolescentes que está vindo é um pouco mais resistente à violência. É que na sala de aula é difícil medir isso. Os debates com eles sobre violência são fáceis, sobretudo na questão de educação sexual. São muito abertos, mas têm os entraves que a sociedade machista coloca. Eu vejo que as meninas têm mais dificuldades quando são lésbicas, mas os meninos gays sofrem muito. A escola e a Igreja são instituições que não avançam, muito pouco evoluem. A gente debate na página, na internet, mas na escola a direção reage. Até meu trabalho de arte na escola é difícil, porque eu bagunço um pouco a escola tradicionalista. A escola que eu trabalho era um manicômio, que é o David Campista. Eu sempre brinco com os meninos: “O prédio não mudou, não teve nenhuma adaptação de estrutura para poder ser escola, o que reflete que a gente meio que reproduz o modelo de cadeia, de sanatório, de hospício, de presídio”. É verdade isso, eles não podem sair, têm que ficar sentados rigorosamente um atrás do outro. Como que um ambiente desses consegue avançar nas questões sociais? É difícil.

Poços Já: A discussão de gênero tem sido discutida na Câmara Municipal, com vereadores que são contra. Como você vê essa questão?

Andréa: Eu não entendi bem o que os vereadores querem com isso, porque na verdade isso já é estabelecido pelo PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais) desde 1996. A LDB (Lei de Diretrizes e Bases) também já estabelece. Então há muito tempo já é inserido, já é tema transversal a discussão sobre gêneros, sexualidade. Já está na grade. Não é que você vai parar a aula para discutir isso, especificamente. Eu trabalho arte, então na história da arte vou trabalhar como que a mulher foi excluída da arte. A mesma coisa com a sexualidade. Acho que esse pânico todo deles é uma questão religiosa. Como tem eleição ano que vem, aparece a foto de defensor da família.

Poços Já: Para finalizar, o que é ser feminista?

Andréa: Acho que ser feminista é lutar pelos direitos iguais, para homens e mulheres, e não aceitar nenhum tipo de exclusão de gênero, de orientação sexual, ou mesmo de etnia. É uma luta como qualquer outra por igualdade. Atualmente, mais do que nunca necessária.

 

 

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