Margarida Pereira Goulart, ou Dona Margarida, tem uma história das mais interessantes. Ajudar os outros é sua grande vocação. Para ela é uma missão, dívida de outras vidas. Aos 88 anos, apresenta sinais do mal de Alzheimer mas lembra nitidamente do passado. Sabe até que teve “vinte e uma quebraduras” no corpo após sofrer um acidente. Dois meses depois ela estava andando. Porém, se esquece rapidamente de quem somos nós. A nora Leila Vieira Goulart nos acompanha e ajuda a “mãe Ida” a lembrar outros detalhes de sua vida.
Dona Margarida sempre foi cercada por necessitados. Apanhava do marido e cuidava das crianças, dos moradores de rua, dos dependentes químicos, dos doentes mentais. Cuidava de fazer a parte dela. Mas a parte dos outros também, afinal ela mesma diz que cuida de quem ninguém quer cuidar.
Poços Já: Quando a senhora começou a ajudar as pessoas?
Dona Margarida: A minha mãe era parteira, ia fazer parto e eu tinha que ir junto. Minha mãe, naquele tempo, não deixava a gente nem entrar pra dentro onde ia fazer o parto. A gente ficava do lado de fora. Eu ficava até ouvir o neném chorar. Então, a gente foi acostumado assim, a só mexer com doente. Dentro de casa, ninguém pegou isso. Só eu que peguei. Nós eramos sete irmãos.
Poços Já: A senhora nasceu em Divisa Nova. Como veio parar aqui em Poços?
Dona Margarida: De Divisa Nova eu vim para Botelhos, criança ainda. Aí depois de Botelhos vim pra cá, pra roça.
Poços Já: Aí a senhora casou?
Dona Margarida: Eu casei.
Leila: Não foi aqui que a senhora casou, foi em Divisa, praqueles lados.
Dona Margarida: Foi em Botelhos, eu casei em Botelhos.
Poços Já: Quantos anos a senhora tinha?
Dona Margarida: Eu era nova, tinha uns 16, 17 anos. Acho que foi com 17.
Leila: A senhora casou com uma pessoa doente também, né mãe Ida?
Dona Margarida: Casei com uma pessoa doente mental. Pois eu pus ele no cemitério, quando Deus chamou. Não larguei não.
Poços Já: E quantos anos ele tinha quando morreu?
Dona Margarida: Ele estava com 48.
Poços Já: Como que era conviver com um doente mental no casamento?
Dona Margarida: Você sabe o que acontece? A gente acostuma. Ele era trabalhador, mas se ficasse com raiva de qualquer coisa, se a gente tivesse proseando aqui e ele entrasse com raiva, quebrava a cadeira. O doente mental faz isso. É a doença mais triste que tem no mundo, é doença de cabeça. Ele matava vaca de porretada, matava boi no carro. Ele tinha carro.
Poços Já: E com a senhora, já teve algum problema?
Dona Margarida: Batia na gente, batia nas crianças quando as crianças eram pequenas. Ele era doente mental.
Poços Já: E a senhora entendia que era por conta da doença?
Dona Margarida: Era doença, a gente sabe que é doença. A pessoa não vai fazer uma coisa assim por querer.
Poços Já: Depois dos partos, o que mais a senhora fazia pelos outros?
Dona Margarida: Eu fazia parto também. Ajudava morador de rua, tudo eu ajudava. Dava jeito, minha mãe ficava até brava comigo. Mas eu: “Não mãe, ele tá sem comer, tá com fome. Vou dar comida pra ele”. Aí eu ia pra cozinha, arranjava um prato de comida e trazia pra ele. Minha mãe, que era parteira, era muito boa.
Poços Já: E o seu marido aceitava que a senhora cuidasse das pessoas?
Dona Margarida: Ele aceitava, mas ele não gostava. Não gostava do doente. Ele ficava xingando sozinho, eu não importava. Acho que é uma dívida, inclusive.
Poços Já: A Chácara Santa Terezinha foi a primeira que a senhora fez, para tratar os dependentes químicos. Como começou?
Dona Margarida: Não tinha onde por os doentes, aí o Restaurante Fazenda arranjou a Chácara Santa Terezinha. Aí a gente foi. Ganhei o terreno, fui pedindo ajuda para construir. Foi o povo que fez.
Poços Já: Agora já é outra, a Chácara Santa Clara. Por que mudou?
Dona Margarida: Pois é, aonde tinha o terreno não era da gente. Aí foi preciso mudar. Eu ganhei aquele terreno dos Miguel e fui pra lá.
Poços Já: E por que tem esses nomes de Santa Terezinha e Santa Clara?
Dona Margarida: Santa Clara porque o rapaz que me deu o terreno é muito devoto de Santa Calara. Foram os Miguel mesmo que me deram. A Santa Terezinha eu não sei por quê. Por devoção.
Poços Já: E como é o tratamento na chácara, o que acontece quando a pessoa chega lá?
Dona Margarida: Quando ele chega, chega por dependência. Na hora quer internar, daqui a pouco já não quer mais. O médico dá remédio,o doutor João.
Leila: Tem psiquiatra e psicóloga.
Dona Margarida: Num instantinho eles melhoram. É só garrar a dar soro caseiro pra eles (risos). Pra desintoxicar.
Poços Já: Por que é importante internar o dependente?
Dona Margarida: Porque o vício é uma doença. Ele fala que largou, não quer mais nada, não quer saber, não quer é pouco. A pessoa depois de viciar, não é fácil não. Agora tem a droga também, a droga não deixa esquecer.
Poços Já: Antigamente, o dependente químico era mandado para o sanatório.
Dona Margarida: Mandado para o sanatório também. Nossa, o que eu internei de gente em Araras, Santa Rita do Passa Quatro. Um monte de gente. Aí depois não podia mais internar, não tinha jeito de internar e eu tive que fazer a chácara.
Poços Já: E foi justamente levando uma pessoa que a senhora sofreu um acidente.
Dona Margarida: Sofri acidente. Fui levar uma pessoa para Santa Rita do Passa Quatro. Quando estava vindo embora.
Leila: Na Kombi da prefeitura, né mãe Ida.
Dona Margarida: Na Kombi da prefeitura. A prefeitura tinha que dar condução para levar o povo. Não tinha condução, não tinha nada.
Poços Já: Mas o que aconteceu?
Dona Margarida: Vinte e uma quebraduras. Os pulsos tudo quebrado, o joelho, o nariz é quebrado, passa a mão para você ver (aponta para o nariz).
Poços Já: Tem um calombo.
Dona Margarida: É, um calombo.
Poços Já: E como a senhora recuperou isso aí?
Dona Margarida: Foi num instantinho.
Leila: Um milagre. Era nova, tinha resistência. O acidente foi em julho e em setembro ela já estava andando.
Poços Já: O que os médicos falaram na época?
Dona Margarida: Eles ficaram danando comigo. “Eu já falei pra largar mão disso, procê não mexer com esse povo”. Eu falava: “Ninguém mexe, como que eu não vou mexer?”. Eles falavam que eu não ia andar mais, se conseguisse comer com a mão direita era pra dar graças a Deus.
Poços Já: Como que a senhora recuperou?
Dona Margarida: Eu fui pelejando, rezando e pedindo. Fiz promessa pra Cosme e Damião. E paguei, pago até hoje, todo ano no dia 27 de setembro. Faço um bolo do tamanho dum colchão de solteiro e dou para as crianças.
Poços Já: Foram Cosme e Damião que salvaram a senhora então.
Dona Margarida: Cosme e Damião. E Deus. O doutor falava pra mim: “Andar, você nunca mais vai andar”.
Poços Já: Ano passado a senhora sofreu outro acidente, caiu. Como que foi?
Dona Margarida: Caí, quebrei aqui (aponta para a perna direita), colocaram uma placa.
Poços Já: Mudou muito a rotina da senhora depois que caiu no ano passado?
Dona Margarida: Aí desandou mais, porque dói mais. Está doendo para andar, mas eu ando assim mesmo. Eu sou teimosa.
Poços Já: Por isso a senhora passou a acompanhar menos o trabalho na chácara?
Dona Margarida: É, faz tempo que eu não vou lá.
Leila: A senhora foi no sábado, no outro sábado. No centro (de umbanda) ela já não vai mais, passou para outras pessoas.
Poços Já: A religião é importante no tratamento do dependente químico?
Dona Margarida: Eu acho que é. Ajuda sim. Eu acho que o espiritismo ajuda muito a pessoa. Espiritismo não é uma religião, é uma ciência. Você pode ir no espiritismo, na igreja, onde você quiser. Não tem problema nenhum. O espiritismo não implica. Fazendo o bem, não tem problema. Faz o bem e não olha nem para quem está fazendo. A religião é essa.
Poços Já: A senhora tem o centro de umbanda e a vida inteira mexeu com pessoas que os outros têm preconceito. A senhora já sofreu preconceito?
Dona Margarida: Não teve nada, meu filho. Sempre me trataram bem, nunca desfizeram de mim não. Graças a Deus.
Leila: Todo mundo procurava a senhora, né? Desde os mais pobres até os mais altos.
Poços Já: E lá no centro a senhora ajuda as pessoas também. De uma outra forma.
Dona Margarida: Ajudo. Quando ele (o dependente) tá passando muito mal, a gente vai lá com ele, mesmo se não for dia de centro, a gente vai de novo, até que ele melhora. A gente luta nesse ponto. Se é para ajudar é para ajudar, não é? Vocês trabalham com quê?
Poços Já: A gente é jornalista .
Dona Margarida: Vocês vão fazer um jornal de mim?
Poços Já: Isso.
Dona Margarida: Mas bom ou ruim?
Poços Já: Bom, uai. A gente vai contar a história da senhora. Como que a senhora começou no espiritismo?
Dona Margarida: A minha mãe era benzedeira. Então a minha mãe ia benzer, eu ia ficar perto. Desde pequena. É uma missão, né? Eu acho que é uma missão. Eu tomo como uma missão.
Poços Já: E a família da senhora ajuda na chácara?
Dona Margarida: Eles ajudam, naquilo que podem eles ajudam.
Poços Já: Tem muita gente que procura a chácara?
Dona Margarida: Tem. Às vezes tem que ter fila de espera, porque não cabe todo mundo.
Poços Já: Quantos internos tem hoje?
Leila: Trinta e oito, o máximo é quarenta.
Poços Já: E quantos funcionários?
Dona Margarida: Tem uns dez.
Poços Já: Como que a Chácara sobrevive?
Dona Margarida: Sobrevive dos outros, o povo ajuda.
Leila: Tem as firmas também. Cerâmica Togni, GM Costa, Menezes, Ramos. Ele dão um pouquinho por mês.
Poços Já: O que a chácara precisa mais?
Dona Margarida: Arroz, feijão, coisas de comida.
Poços Já: E por que a senhora ajuda as pessoas?
Dona Margarida: É dívida, né? Eu acho que é uma dívida do passado. Ninguém gosta de ajudar, eu gosto. Se eu falar procê que eu vou te dar isso aqui (aponta para o celular), você pode ficar sossegado que eu vou mesmo.
Leila: Tudo que ela ganha ela passa pra frente. Essa mulher era para ser rica.
Poços Já: A senhora não é materialista.
Dona Margarida: Não. Dinheiro eu ligo muito é quando a pessoa está precisando, está doente, aí eu tenho que pedir para os outros. Para comprar remédio.
Poços Já: E cumpriu a dívida.
Dona Margarida: É. E eu acho que é uma dívida grande, viu? Muita gente já passou por mim. Criança, tudo. Eu na cama e eles vêm atrás de mim.
Poços Já: E a senhora se sente bem ajudando?
Dona Margarida: Eu sinto. Me sinto feliz.