Queridos amigos e leitores, gostaria de iniciar este artigo compartilhando alguns sentimentos pessoais. No mês que passou, vivemos um momento triste na nossa família. Ocorreu que a Julie, uma cadelinha cocker que nos fez companhia nos últimos 10 anos, foi diagnosticada com um tumor no pulmão. Como já estava muito avançado, não havia muito a ser feito, a não ser esperar pelo inevitável.
Durante um mês, estivemos juntos dela, vivenciando todo o sofrimento. Mesmo com a medicação, era visível o desconforto, a dor, o cansaço e a dificuldade para respirar. Por fim, ela procurou o lugarzinho no qual gostava de ficar, para se deitar e dar seu último suspiro.
Quando a peguei para carregá-la até o local onde a enterraríamos, (era uma cadelinha de médio porte, pesava aproximadamente12 kg), ela estava tão mole e sem vida que parecia um animalzinho de pelúcia. Foi quando me dei conta de que nada mais ali havia, senão ossos e tecidos. A querida e companheira Julie já não estava mais ali.
Durante este tempo – e de fato não só nesta ocasião, mas também em muitas outras – fui invadido por muitos pensamentos sobre a morte. Lembrei-me da morte um pouco recente de um avô (o meu outro avô faleceu quando eu tinha 2 anos), da morte de pessoas conhecidas, amigos e parentes de amigos, etc. E sempre que penso sobre isso, me vêm à mente o mesmo questionamento: por que a morte tem que ser tão sofrida?
A morte é o maior tabu do mundo moderno. E talvez seja o maior tabu da história da humanidade. Nada se sabe sobre a morte, a não ser que você, eu e todos os outros, um dia, teremos o nosso encontro íntimo com ela. Esse é um dilema, um mistério, que não podemos resolver. Entretanto, exatamente por ser um tema agressivo ao ego humano – pois nos leva a encarar o fato de que nada somos senão pó, e ao pó voltaremos – é que deixamos de lado, negligenciamos, e passamos a viver como se fossemos imortais, como se o braço (ou a foice) da morte não pudesse nos alcançar.
Mas por que ninguém fala sobre a morte? É proibido? Se falássemos sobre a morte, estaríamos mais sujeitos a ela do que os outros?
Em minha atuação clínica, me deparo com a angústia da morte o tempo todo. Trata-se do dilema existencial mais presente na psicologia, na filosofia e em tudo o que lhes valha. É a causadora de inúmeros transtornos, fobias, crises de pânico, e por aí vai. Em Ipuiuna, onde atuo no serviço público, toda vez que alguém morre, o alto-falante da Igreja central anuncia com uma música seguida do convite para o velório. É uma situação bastante bizarra. Dá pra imaginar quantos arrepios na espinha e dores no estômago surgem quando a primeira nota dessa melodia ecoa nas ruas estreitas da cidade.
Pra mim está bem claro, porém, que o motivo da morte ser tão trágica e tão apavorante é exatamente o fato de não pensarmos e conversarmos sobre, e de vivermos como se fossemos imortais. Quando nos deparamos com a morte do outro, nos aproximamos da nossa própria morte. E é insuportável ao ego humano perceber que somos finitos. Ora, algo tão misterioso e tão devastador teria mesmo que ser temido! No entanto, é a única certeza que temos nessa vida. Com a morte, não há negociação. Ela dá o preço, nós pagamos esse preço, e ponto.
Nesse contexto, Arthur Schopenhauer, um dos filósofos mais melancólicos da história (senão o mais), afirmou que nós somos como cordeiros que brincam no campo, enquanto o açougueiro nos observa para a escolha do abate. Assim somos nós, inconscientes do mal que nos espera: doença, dor, morte.
José Saramago, prêmio Nobel de literatura, em seu livro “As intermitências da morte”, trata a morte como um ente, um ser, como qualquer um de nós, que um dia, sabe-se lá por qual motivo (talvez pela falta de gratidão dos homens), se cansa e resolve parar de trabalhar. A trama se inicia com a seguinte frase: “No dia seguinte, ninguém morreu”. No início, foi uma alegria total. Mas passado um tempo, tornou-se um inferno. As pessoas vegetando, a idade avançando cada vez mais, a vida sem a perspectiva do fim. Saramago foi um dos únicos a imaginar como seria a vida sem morte, e dá os motivos para acreditarmos que seria muito mais terrível e assustadora. A leitura vale à pena.
Em Poços de Caldas, temos o grande musical Vamos Minha Gente, que retrata a vida de São Francisco de Assis. Na cena mais tocante do musical, São Francisco de Assis contracena um encontro de arrepiar com a própria morte. Enquanto um bocado de viúvas em luto tenta convencer o santo do quão cruel a morte pode ser, São Francisco rasga elogios àquela que veio lhe visitar, chamando a morte de irmã, de esposa. Diz que a morte é dolorosa e belíssima, que renova a humanidade, que mata os nossos dias pra vivermos os séculos. Por fim, bastou um beijo gelado, e São Francisco de Assis não habitava mais esse mundo.
No seriado televisivo American Horror Story: Asilum, a morte aparece para aqueles que a clamam, como uma figura de uma mulher de meia idade, talvez até mais idosa, que com certeza fora belíssima em sua juventude, com um olhar profundo e penetrante, e com a sutileza de um anjo ou arcanjo. Educadamente, ela se aproxima da pessoa e, tendo o aval do fulano, ela libera asas terrivelmente negras e gigantes, abraça e beija o moribundo, e carrega sua respiração sabe-se lá pra onde. Pra quem observa, é apenas o último suspiro do condenado. A pessoa comum, que poderia muito bem ser eu ou você, não enxerga a olho nu, a grandiosidade e a beleza gelada desta cena.
Tentei colocar aqui algumas das várias interpretações da morte, algumas mais macabras ou bizarras, outras mais simpáticas e poéticas. Mas por mais estranho que isso possa parecer, ainda bem que tem gente que fala sobre a morte. Parece mesmo que a “cura” da morte reside na sua aceitação.
O fato é que todos nós, sem exceção, um dia ficaremos cara a cara com a própria morte. Provavelmente, se já estivermos familiarizados com ela, o encontro não será desastroso; uma conversa amigável, e tudo estará resolvido. Se convidarmos a morte para participar de nossas vidas – e não podemos nos iludir, porque mesmo se não houver o convite ela participará – talvez possamos finalmente ter um diálogo construtivo com ela. E talvez, a morte possa nos ensinar muito a respeito de nossas limitações humanas, e quem sabe até mesmo nos ensinar a viver com autenticidade, e aproveitar cada segundo desta vida que nos é dada como um presente, e também retirada como tal.
*O autor é psicólogo
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Consultório: Rua Prefeito Chagas, 405, sala 2. Centro, Poços de Caldas.