Eu deveria estar contando uma história de amor, afinal ele só tinha 17 anos. Assim como os outros garotos da sua idade, se apaixonou, viveu a rebeldia da adolescência, mas não pode concluir os estudos e experimentar a vida adulta. Nem seguir seus sonhos, nem ver seus pais envelhecerem. Muito menos viver seus amores. Aliás, isso era tudo o que ele não podia: amar sendo quem ele era.
Quando a família do Lucas me procurou para que escrevesse sua história, não percebi de pronto a responsabilidade que eu assumira diante de suas irmãs, pais e talvez diante dele próprio. Foi somente quando ouvi a leitura da psicografia que receberam pedindo que a luta por igualdade de direitos fosse levada adiante, que tive noção do quanto esse texto teria importância para uma família que perdeu um membro ainda adolescente, de forma dolorosa, cruel e injusta. Ainda que a crença de quem leia este texto não seja igual à da família e ainda que não tenhamos crença alguma em outra vida, nada diz mais respeito a esta vida e a este mundo do que a igualdade de gênero e orientação sexual. Porque por estes dois motivos, gênero e sexualidade, somos mortos às dezenas todos os dias no Brasil. Por sermos gays, por sermos mulheres, por sermos travestis, por sermos transexuais. Por sermos quem nós somos.
Lucas se matou aos dezessete anos. A família havia aceitado sua condição. Talvez em algum momento, me contaram, não souberam exatamente como lidar com um filho ou um irmão gay, afinal, estamos em uma sociedade heteronormativa e lidar com homossexualidade envolve uma série de questões difíceis e que necessitam ser aprendidas e construídas. Mas ele foi muito amado. Não! Lucas é ainda muito amado. O neto preferido, o irmão mais novo. A irmã conta que tudo era feito pra ele, mas ainda assim o menino sentia que esse mundo não era dele. Um dia, voltando da escola, um grupo de meninos lhe cercou e passou a lhe ofender. E que tratamento esperamos dessa sociedade hipócrita e machista, além de xingamentos de veado, mulherzinha, bicha, vem aqui pra eu ver se você é homem? Lucas foi espancado, conseguiu pegar no chão seus materiais de escola e correu quando uma vizinha abriu a janela e os garotos lhe deixaram escapar. Nunca mais foi o mesmo.
Depressivo, com a falta do avô que havia falecido há pouco tempo e as memórias da humilhação sofrida, da surra, da sensação de insegurança nas ruas, do desgosto amoroso, Lucas passou algum tempo desanimado de viver. Sentiu mais uma vez, e essa seria a última, que esse mundo não era pra ele. Acreditou que morrer poderia não ser doloroso como era vida. E se foi. Deixando em nossas mãos a incumbência de lutar até o último dia de nossas vidas por um mundo mais justo para nossos filhos. Porque Lucas pode ser meu filho e pode ser o seu. Lucas não teve escolha quanto à sua orientação sexual e nossos filhos podem também não ter. Se houvesse escolha, há alguém que escolheria apanhar pela rua? Sofrer preconceito por ser quem é? Ter que explicar a forma com que se relaciona como se isso determinasse seu caráter?
Ser gay não é errado, não é pecado, não é anormal e nem sequer é diferente. Ser gay é como ser hetero, nem uma gota a mais ou a menos. A dificuldade é causada pela heterornormatividade, a norma heterossexual estabelecida por nossa sociedade. Não há desvio, não há sequer alguma complicação ou exigência além do respeito e do entendimento de que nós somos múltiplos. Nós, seres humanos, somos incríveis em nossa capacidade de amar! Eu disse amar e não fazer sexo, somente. Porque há em nosso imaginário social, a falsa visão de que gays somente fazem sexo, “sexo gay”, quando na verdade, gays fazem sexo como qualquer outra pessoa, e que também ama, vive, chora, dorme de conchinha, toma banho junto, briga, sente ciúmes, trai, exagera, trata bem e trata mal, fica sozinho, fica mal, namora, larga, volta, se casa, adota, cuida dos filhos.
De quantos mais entendimentos de que não há diferença entre as pessoas precisaremos para não perdermos mais um Lucas? Para que a família do Lucas sinta que o mundo está um pouquinho sequer que seja, melhor para os meninos e meninas gays que estão aí, ou os que virão? Para que nossos filhos tenham a liberdade de ser quem eles são sem ser considerados incompetentes, degenerados ou sem ter que ficar se explicando e contando um grande segredo babaca quando chegarem à adolescência: –mãe, pai, eu sou gay! Eu diria de volta: –E daí? Alguém aqui contou que é hetero? Alguém aqui contou que se apaixonou por alguém do sexo oposto na escola, com ares de transgressão? Alguém apanha na rua por ser heterossexual e entende que não pode mais viver nesse mundo porque tem sua vivência desrespeitada, sendo “a norma”?
No entanto, sei bem que a realidade das “famílias tradicionais” (leia-se moralistas) não é essa. Já cansei de ouvir das prestimosas mães que seria uma decepção se seu filho fosse gay, que nenhuma mãe quer isso, e por aí seguem as baboseiras. Em minha experiência de trabalho e maternidade de adolescente, tenho uma lista a sugerir de preocupações reais que devemos ter sobre nossos filhos: serão profissionais honestos? Serão responsáveis? Respeitarão as pessoas com quem se relacionarem? Se perderão no mundo das drogas e do tráfico ou do alcoolismo (realidade de milhares de jovens no Brasil? Terão caráter? Serão comprometidos com o ser humano? Serão felizes? Se sentirão amados por nós? Poderão contar conosco caso se sintam tristes ou algo saia errado em suas vidas? Preocupações sérias e que nos dizem respeito e não meras imposições culturais que só servem para excluir e discriminar pessoas que deveriam ter um futuro brilhante pela frente!
Lucas não estava errado no mundo, assim como nenhum dos nossos garotos está. O mundo é que está errado, Lucas! Nós é que temos que pedir perdão pela nossa incompetência em conceber uma sociedade mais justa para todos, para que meninos e meninas vivam com segurança e possam ser quem eles são. Nós, adultos, é que não conseguimos calar as piadinhas ridículas que só reforçam o quanto somos preconceituosos e intolerantes. Nós educamos nossos filhos e filhas de forma machista, por consequência homofóbica. Nós é que criamos nossas filhas e filhos com funções sociais determinadas sem saber se essa é a vontade deles, lhes condicionando a assumir papéis que talvez eles não queiram, que talvez nunca lhes caibam. Nossa escola é machista, é homofóbica. Nossas famílias são machistas, homofóbicas e racistas. A TV é assim. Fomos nós, somos todos nós, que permitimos o espancamento quando colaboramos com os discursos, quando rimos, quando fazemos piadinhas, quando não abrimos as possibilidades de vida às pessoas. E a responsabilidade também é nossa de modificar tudo isso. Enquanto isso, é preciso que se lembre, são nossos filhos, nossos alunos, irmãos, nossos conhecidos e familiares que estão morrendo e ninguém morre por ser gay, morre por ser vítima de homofobia.
* Agradeço imensamente à família do Lucas, especialmente à sua irmã, Jéssica Nuevo, que me recebeu tão carinhosamente em sua casa, me abrindo a intimidade de todos estes relatos, incluindo a psicografia que a família recebeu de seu irmão. Foi também a pedido da família que eu mantive no texto o nome real. Obrigada, Lucas!
** Andréa Benetti é pedagoga, formada na Puc Minas pelo ProUni, e conselheira tutelar em Pocos de Caldas, regiões sul/oeste.